quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

OUTROS TEMPOS - O TEMPO DE AGUINALDO SILVA


Em plena tarde do domingo de carnaval olindense, acompanhado de amigos do Mato Grosso do Sul, tive a surpresa do feliz re-encontro, depois de mais de quarenta e cinco anos de apenas notícias, com Alves Dias, o grande artista plástico sempre inovador e dos maiores amigos companheiros da juventude.
Recém vindo da consternação pela perda da Gina, sua companheira de longuíssimos anos, igualmente artista plástica de escol da cena olindense, dedicada à pintura naïf, Dias rememorou-nos os outros tempos que viveu com outros companheiros – na tentativa de luta insurreta contra o establishment burguês - e da que vivemos juntos na luta política estudantil, sempre travada pela realização concreta da liberdade e da igualdade.
Dentre as rememorações que nos acorreram, pela extrema violência contra o direito de livre expressão – no caso, artística – e contra a autonomia da universidade, sobrelevou-se o episódio do roubo de três quadros, em agosto de 1965, pelos beleguins da ditadura instalada há um ano, do salão de artes comemorativo da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, promovido pelo Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, no saguão da consagrada Faculdade de Direito do Recife.
O mandato de Carlos Eduardo CADOCA Pereira – hoje, deputado federal pelo estado de Pernambuco – iniciado naquele ano de 1965, foi o primeiro em que a “esquerda” assomou à presidência do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife, que vinha sendo dominado, por muito tempo, pelos enfants da elite burguesa nordestina – ora mais à direita, ora mais ao centro; fato que por si só provocava a ação de permanente “vigilância democrática” (1) também sobre aquela fração da juventude estudantil pelos órgãos de repressão do “estado novo da UDN” (2), como já se fazia com relação aos diretórios “esquerdistas” desde algum tempo – por exemplo, Engenharia e Medicina.
Naquela ocasião, era eu o Diretor de Cultura e Apostilas do Diretório Acadêmico presidido por Cadoca e promotor do salão de artes plásticas rememorado; para cujo empreendimento foi indispensável a coordenação do colega Carlos Roberto Pio da Costa, dotado de profícua cultura artística e que, depois, veio a ser assessor de Arthur da Távola, quando Senador pelo estado do Rio de Janeiro; em cujo evento Dias foi um dos artistas plásticos expositores, que contava com Maria Carmem, Wellington Virgolino, Corbiniano Lins, João Câmara, entre outros.
João Câmara cedeu para o salão a sua obra A C(R)UZADA, que retratava o busto de uma mulher de perfil – vestida por uma blusa diáfana, deixando-se ver o seio, a portar uma lança com uma flâmula na extremidade da haste, na qual se via a expressão A CUZADA, uma vez que o R (de CRUZADA) estava oculto pelo drapeado da bandeirola.
Wellington Virgolino colaborou com o CAPITÃO DE FANDANGO, figura expressiva de olhos amendoados e floreada ao modo característico do pintor, que encimando todos os galões exibia um PENICO sobre a cabeça.
E Alves Dias emprestou para exibição no salão O CRISTO NU, em que retratava o Salvador crucificado, assim como as igrejas cristãs o expõe, mas com o sexo exposto.
Certo dia da semana de artes, ao meio das aulas em ministração, fomos todos, os professores, estudantes e funcionários da Faculdade, assustados com o pandemônio causado pela queda dos cavaletes em que se assentavam os quadros em exposição no saguão do salão de artes.
Todos corremos para lá e, indignados, nos informamos de que foram policiais civis, vestidos a caráter, na época - terno branco, gravata e chapéu – que haviam arrebatado com truculência as pinturas de João Câmara, Wellington Virgulino e Alves Dias, levando-as acintosamente em jipe oficial - de cor azul e chapas brancas, não anotadas, em face da rapidez da ação.
Desconhece-se o paradeiro dessas obras de arte, mas há algum tempo um ex-membro do famigerado Comando de Caça aos Comunistas (C.C.C.) - hoje, falecido – revelou-me que tais quadros se encontravam integrados a coleções particulares de famílias da mais alta elite burguesa pernambucana.
Esse episódio é demonstrativo do início brando de outros tempos, que vivemos por vinte e um anos: os tempos saudosos de Aguinaldo Silva – o culto, fino e educado novelista da vênus platinada global (3), os tempos da ditacuja, porque dizer ditadura é revanchismo.
P.C.S.
NOTAS = 
(1) A ETERNA VIGILÂNCIA É O PREÇO DA DEMOCRACIA foi o lema da extinta União Democrática Nacional - UDN, partido da alta burguesia brasileira, fundado depois da redemocratização de 1945 e extinto, em conjunto com todos os outros, pelo Ato Institucional n.° 2, do regime militar instaurado pelo golpe de 31/03/1964;
(2) ESTADO NOVO DA UDN, foi como inicialmente os analistas políticos apelidaram o regime ditatorial instaurado com o golpe militar de 1964, porque esse partido, que fora criado a partir de fração do socialismo democrático opositor ao Estado Novo de Getúlio Vargas (1937/1945), foi o principal setor civil organizado partidariamente que incitou e participou da intervenção militar na vida pública brasileira, como por fim ocorreu. Não é demais lembrar que a UDN esteve envolvida com tentativas de golpe contra o governo democrático de Getúlio Vargas (1950/1954), contra a posse do presidente eleito Juscelino Kubistchek e com levantes militares contra o governo de JK;
(3) O novelista, em postagem comentada no blog de um certo Bruno Garschagen, sob o título A Transição Está Em Curso III, se afirmou culto, fino e educado a se distinguir da razza esquerdista e produziu afirmações marcantes tais como: ... por mais sangrenta que fosse a ditadura, as aflições que então sofríamos por causa disso não tinham tanto peso quanto têm as aflições de hoje, quando somos supostamente livres; cujo aprendizado da bazófia assumida publicamente por impunidos co-autores do Ato Institucional n.º 5, de 1968, foi objeto do artigo A VERDADEIRA IMPUNIDADE OU O RESÍDUO DA DITADURA, publicado neste blog.