2. Roma - O latifúndio e a Lei Semprônia
Agrária.
Tal como na Grécia antiga, no reino
de Roma a sociedade era estruturada na posse comum da terra, por vezes dividida
entre as tribos, as gens e famílias, mas não individualizadas.
É atribuída a Rômulo a primeira divisão de terras entre indivíduos, em
áreas de cerca de um hectare, mantidas as terras comunais das gens.
A populus romanus, base do futuro patriciado, era constituída por
três tribos, que reunidos em comício elegiam o seu rex, chefe militar,
grão-sacerdote e presidente de certos tribunais, entretanto sem funções civis
ou poderes que não proviessem diretamente dos seus encargos disciplinadores ou
do exercício das suas atribuições judiciários. E o rex poderia ser
deposto.
Tratar-se-ia, pois, de uma democracia militar, pelas palavras de Engels.6[1]
A ordem social estruturada nas
gens veio de ser extinta, possivelmente, com uma nova constituição atribuída ao
rex Sérvio Túlio, baseada na divisão territorial e nas diferenças de
riquezas – seis classes conforme a riqueza, todas encabeçadas por homens
sujeitos ao serviço militar.7[2][3][4]
A república se iniciou em Roma com a expulsão de Tarquínio, o último rex,
e a sua substituição por dois chefes militares, denominados cônsules, em
conformidade com nova constituição social (Id), a
se seguir sua expansão com a invasão de territórios na península itálica e
norte da África.
As conquistas bélicas da República romana não só aumentaram os seus
territórios, mas também acrescentaram à sua população os emigrantes dos povos
submetidos, em grande parte latinos, que vieram a formar a plebe.
A terra produtiva teria então sido dividida com certo equilíbrio entre os
pertencentes à populus romanus e à plebe.
Os plebeus eram livres, pagavam impostos, eram sujeitos ao serviço
militar e podiam ser possuidores de terras como se fossem proprietários,
contudo não integravam a populus romanus e, como tal, não poderiam
exercer função pública, tomar parte nos comícios nem ser beneficiados com as
terras conquistadas pelo Estado romano.
A expansão da República ensejou aos patrícios, a classe superior oriunda
da populus romanus, e aos oficiais do exército romano o crescimento dos
seus negócios privados com as terras produtivas conquistadas, embora essas
pertencessem ao Estado; por cujo uso esses aquinhoados pagavam uma taxa ou um
aluguel.
As terras, assim entregues a Roma, formavam o ager publicus. Messias JUNQUEIRA cita SAVIGNY para a melhor compreensão da posse privada sobre as terras públicas da República romana:
“Nesses tempos recuados da expansão romana, posse é pura e simplesmente ocupação e utilização de terras públicas. Ao lado do direito de propriedade, organizado pela regra jurídica aplicável aos cidadãos romanos, produzia-se alguma cousa análoga e equivalente na prática, isto é, um direito positivo e exclusivo de uma pessoa ao uso e gozo de uma cousa. (Savigny)”.8[5]
O mencionado agrarista, ainda sobre esse tema específico, cita também
MAYNZ:
“... O solo romano se compunha de domínio público e de propriedades privadas: ager publicus e ager privatus. Só este último podia pertencer, com o caráter de propriedade, aos cidadãos. Quanto ao primeiro, abstração feita das terras destinadas ao uso comum, os particulares podiam ocupá-lo, cultivá-lo e aproveitá-lo. Tal ocupação não lhes dava a propriedade, não lhes dando, destarte, as ações reais protetoras da propriedade. Cumpria, pois, organizar-se outro meio jurídico para, especificamente, resguardar essa ocupação, das agressões arbitrárias. Tal meio foi a instituição dos interditos possessórios, que, desenvolvida pela prática, foi depois aplicada a toda e qualquer dominação sobre a coisa, desde que tal dominação não tivesse o caráter de propriedade. Enfim, quando todo o domínio público já se havia transmudado em propriedade privada, o sistema de posse havia adquirido o caráter de generalidade, que se vê na legislação de Justiniano (Maynz).”9[6]
Entretanto, muitos possuidores em Roma usurpavam as terras cedidas a
outros agricultores, formando as suas posses grandes áreas, a diminuírem ou
extinguirem a posse dos usurpados.
As grandes áreas eram trabalhadas
principalmente com a mão de obra escrava e de pequenos agricultores livres,
possuidores de terras insuficientes à produção da própria subsistência.
A mão de obra escrava era obtida mediante a submissão dos povos
conquistados pelas guerras.
Dentre os grandes detentores de terras, havia plebeus enriquecidos com o
comércio e a gestão de negócios públicos, desde construção e administração de
obras até a cobrança de impostos.
Nessa época, a República Romana não geria diretamente os serviços
públicos e atribuía a cobrança de impostos a pessoas privadas, os publicanos,
que adiantavam ao Estado uma arrecadação supostamente previsível.
Os pequenos agricultores livres, ante as provações crescentes na vida do
campo, deslocavam-se para as cidades e, aí, compunham massas de artesãos e
desocupados.
Assim descortinou-se o elo do latifúndio com o escravismo na República de Roma:
“En Roma empleabase en grandes proporciones el trabajo de los esclavos para la agricultura. La nobleza romana poseía grandes extensiones de tierras, los latifúndios, en que trabajavan cientos y miles de esclavos. Estos latifúndios se formaron mediante la usurpasión de las tierras de los campesinos y de las tierras públicas pertenecientes al Estado.[7](10)
A classe dos patrícios extinguiu-se com a nova classe dos proprietários
de dinheiro e terras, que absorveram gradativamente as terras produtivas dos
camponeses empobrecidos pelo serviço militar as quais, transformadas em imensos
latifúndios, passaram a ser cultivadas com a mão de obra escrava.(11)
Na Roma republicana já ocorriam o latifúndio e o minifúndio, a exigirem
reforma agrária.
Messias JUNQUEIRA assinala que houve
quase uma centena de leis formadoras de núcleos agrícolas, com distribuição de
terras a veteranos e civis romanos, às quais historiadores e juristas dão o
nome de leis agrárias, tendo sido a primeira delas a promulgada no consulado de
Spurius Cassius, no ano 486 a.C., e a última a Lei Júlia Agrária Campana, do
ano 61, no primeiro consulado de Júlio César, pela qual foram distribuídas
terras na fértil Campânia, incorporadas na segunda guerra púnica, a 20.000
chefes de família pobres e a veteranos de guerra com três filhos ao menos.
“Todavia, nenhuma dessas leis
agrárias teve o intuito de atingir o patrimônio particular dos cidadãos,
atentando contra o seu direito de propriedade. (Accarias)”12[8]
A maior parte de tais leis agrárias
tinha por escopo meras distribuições de terras públicas; no entanto, sobressaiu
delas a Lei Licínia Agrária, do ano 367 a.C., por objetivar a arrecadação de
fundos para as tropas romanas e a formação de uma classe média rural, cujos
dispositivos foram renovados nos anos 133 a.C. e 123 a.C., pelos irmãos Graco,
com a Lei Sempronia Agrária.
A ascensão social dos plebeus enriquecidos causou o reconhecimento deles
com o epíteto de “cavaleiros”, a quem eram deferidos na prática direitos e
vantagens que não cabiam ao comum do povo.
A insatisfação dos patrícios com a ascensão social dos “cavaleiros”,
refletida em grande parte do Senado, agregou-se às crises já originadas por
rebeliões dos escravos e escassez de alimentos para as populações indigentes
urbanas.
Ante essas condições, criou-se junto ao Senado o cargo de Tribuno do
Povo, inclusive com função de veto sobre decisões adotadas contra os interesses
dos seus representados.
Messias JUNQUEIRA cita Niebhurem, ao afirmar que a Lei Licínia foi realmente uma Lei Agrária, porque teria determinado a fixação de um teto para a ocupação de terras públicas, e considera que essa lei, proposta pelos tribunos da plebe Licínio Stolon e Lúcio Sextio,13[9]era juridicamente fundada frente à doutrina da imprescritibilidade das terras públicas, pela qual , segundo a tradição:
“Nenhum cidadão poderá possuir mais de 500 jeiras (125 ha) de terras públicas. Ninguém conservará nas pastagens públicas mais de 100 cabeças de gado de grande porte e 500 cabeças de gado de pequeno porte. Das terras restituídas ao Estado tomar-se-á o bastante para distribuir a cada cidadão pobre, 7 jeiras (1 há, 74 a). Os que continuarem ocupando terras públicas, recolherão ao Tesouro Público 1/10 do produto da terra, 1/5 do fruto das oliveiras e da vinha, e a contribuição devida para cada cabeça de gado. De 5 em 5 anos tais contribuições serão adjudicadas pelos censores aos contratadores de rendas, que melhor oferta fizerem, aplicada essa arrecadação no soldo das tropas. Cada proprietário será obrigado a empregar em suas terras certo número de trabalhadores livres, proporcionalmente à extensão dos seus domínios. (Victor Duruy)” 14[10]
Tratava-se de uma espécie de arrendamento “ad perpetuum”, ou “longum
tempus”, com pagamento de pensão anual, que Justiniano definiu ser um negócio
“sui generis”, situação jurídica peculiar, a enfiteuse, pela qual o domínio
pleno é partilhado em dois simultâneos: a) o domínio nu, ou direto, pertencente
ao proprietário; e b) o domínio útil, o do enfiteuta. 15[11]
Essas terras públicas tinham sido devolvidas ao Estado quando do fim da
II Guerra Púnica, contra Cartago, cidade-estado fenícia.
Tibério Graco, mesmo de origem patrícia (segundo alguns pesquisadores seria um cavaleiro), ao ser eleito Tribuno da Plebe em 133 a.C., propôs uma lei de reforma agrária, considerada uma reformulação da Lei Licínia suavizada, que visava a redistribuição por locação em áreas menores das terras públicas, então cedidas aos patrícios e cavaleiros, formadoras de latifúndios, dadas em arrendamento “ad perpetuum”.
“Os problemas que Tibério Graco
tencionava solucionar eram exatamente aqueles que não escaparam a antevisão de
Licínio: o ager publicus açambarcado pelos usurpadores; a plebe rural
dizimada pela guerra; o trabalho servil substituindo o trabalho livre e a
Itália despovoando-se nos imensos latifúndios, que, do ponto de vista, agrícola,
acabariam por perde-la, na conhecida afirmativa de Plínio.”16[12][13]
A proposta de reforma agrária apresentada por Tibério Graco, membro da
gens Semprônia, somente veio a se tornar a Lei Semprônia Agrária (133 a.C.)
depois de destituído por plebiscito o outro tribuno do povo, Cneo Octávio, que
se opusera à propositura ao proposto por veto constitucionalmente insuperável;
cuja destituição gerou consequencia fatal a Tibério ao final do seu mandato.
Constavam da proposta da Lei Semprônia, submetida a comícios populares:
”I.º- que todas as terras públicas,
ilegalmente ocupadas, sejam retomadas; II.º - que se conceda aos detentores de
terras delas desapossados , indenização em razão das benfeitorias úteis; III.º
- que cada ocupante possa conservar 500 jeiras (o máximo da Lei Licínia)
concedendo-se, além disso, a cada filho do ocupante, 250 jeiras, sem que, em
caso algum, a concessão total ultrapasse
de 1.000 jeiras (250 ha); IV.º - que as terras retomadas sejam divididas em
lotes de 30 jeiras (7 ha e 49 a), e os lotes distribuídos, mediante sorteio,
entre cidadãos romanos e aliados itálicos, não a título de propriedade, mas de
concessão perpétua, transmissível hereditariamente, sob o único encargo de
mantê-los em bom estado de cultivo. Os lotes serão gravados de inalienabilidade.(*) Dispositivos
acessórios organisarão o processo de execução. Triúnviros, eleitos anualmente
pelo povo, deverão encarregar-se das operações de retomada e partilha, bem como
da delimitação entre o domínio do Estado e as propriedades particulares; V.º - Que
cada proprietário rural se obrigue a empregar em suas lavouras, determinado
número de trabalhadores de condição livre; VI.º - Que a ninguém seja lícito
manter nas pastagens públicas, mais de 100 cabeças de animais de grande porte
ou mais de 500 cabeças de animais de pequeno porte” (Ernest Moullé)17[14][15]
Na aprovação
da Lei Semprônia, foi suprimido o dispositivo de indenização das benfeitorias
úteis constituídas nas áreas retomadas aos antigos ocupantes, não constante da
Lei Licínia, mas prevista no projeto apresentado por Tibério Graco.18[16]
Para a aplicação da Lei Semprônia instituiu-se uma Comissão, liderada
pelo próprio Tibério Graco.
Ainda que contasse com o apoio de um dos Cônsules, sogro de Tibério, a
Lei Semprônia foi violentamente atacada pelos patrícios liderados por Cipião
Emiliano, primo e cunhado de Tibério, e impedida de aplicação por haver o
Senado negado à sua Comissão os recursos financeiros necessários. (19)
À vista da possibilidade de revogação da lei de reforma agrária, Tibério
Graco lançou-se à reeleição do cargo de Tribuno do Povo e, por isso, foi acusado
pelos conservadores de pretender ser tirano, atentar contra a República. (Id.)
Antes de se iniciar a eleição, um grupo de senadores e seus adeptos
promoveram tumultos no intento de se opor à Assembléia Popular, terminando com
a morte por espancamento de Tibério Graco e de cerca de 300 (trezentos) dos
seus seguidores.(20)[17][18]
A Lei Semprônia de reforma agrária não foi revogada, em que pese o
assassinato de Tibério (133), e a Comissão de Terras encontrou apoio entre
conservadores, que teriam querido demonstrar ao povo não serem contra a lei,
mas contra o modo político de Tibério agir.21
A atividade da Comissão de Terras teria detido o declínio dos pequenos
camponeses por algum tempo.
Em 123 a.C., Caio Graco, irmão de Tibério, então Tribuno da Plebe, buscou
radicalizar a ação da Comissão de Terras da qual era integrante e teria obtido
mais êxito do que o seu irmão.22
Caio Graco, com a confirmação da lei de reforma agrária, promoveu a
colonização de terras com pobres romanos desabrigados em diversos lugares da península
itálica e na primeira colônia ultramarina romana, Cartago.Id.
Embora mais popular do que o seu irmão o foi, Caio Graco não conseguiu o
terceiro mandato de Tribuno da Plebe, frente à grande oposição dos
conservadores.
Ao fim, a colonização de terras em Cartago foi interrompida, o Senado declarou estado de emergência e levantou uma revolta contra Caio Graco, em cujo tumulto o tribuno veio a falecer, possivelmente assassinado como o irmão, embora historicamente seja admitido o suicídio. 23[19]
“E no
início da jornada da transformação de Roma de uma República para o Império
estavam os irmãos Graco e suas reformas agrárias. Os dois irmãos deixaram uma
marca indelével na história da república...”Id.
Consta historicamente que “A queda do Império Romano, no ano 476 da nossa
civilização, veio encontrar em seu apogeu, o regime dos latifúndios romanos.” 24[20][21]
______
(6) Friedrich ENGELS, op. cit., p. 119.
(7) Messias JUNQUEIRA, Terras Devolutas na Reforma Agrária, 1964, S. Paulo, ps. 12/3.
(11)
(12) Apud Messias
JUNQUEIRA, op. cit., p....
(15)Eduardo SANTOS, Quais foram as sanções políticas dos irmãos Graco e suas consequências para a República Romana, <www.pt.quora.com>
(19) ...
(21) Apud Eduardo SANTOS, idem.
(22) Messias JUNQUEIRA, idem, ps. 27/30.