terça-feira, 9 de julho de 2024

QUESTÃO AGRÁRIA - CAPÍTULO II. O feudalismo.

 

CAPÍTULO II

O feudalismo.

1.                 A permanência da propriedade comunitária no País de Gales e na Irlanda.


Nos latifúndios romanos – latifundia – havia dois modos de exploração da terra com mão de obra escrava:

a) O modo que empregava pouca mão de obra, com a criação de gado ovino ou vacum; e

b) O modo que empregava grande utilização de mão de obra, com horticultura de grande escala em fazendas, para provimento dos mercados das cidades.

Com a decadência das cidades e o empobrecimento dos latifundiários, a exploração de grandes áreas de terras foi à ruína por completo e a única forma compensadora de agricultura passou a ser o retorno ao cultivo em pequenas fazendas.

As pequenas fazendas, resultado da divisão física dos latifúndios, passaram a ser exploradas em parceria, cujos parceiros trabalhadores (partiarii) recebiam por uma remuneração variável de um sexto a um nono da produção anual, ou mediante uma espécie de arrendamento, pelo qual os arrendatários pagavam aos senhores da terra uma quantia anual fixa em dinheiro.

Em qualquer dessas espécies, os parceiros e os arrendatários, embora não fossem escravos, ficavam vinculados à terra, o que lhes obrigava a permanecerem na gleba perpetuamente, ainda que ela viesse a ser transferida a outro titular.1[1]

                    Esse modo de exploração dos latifúndios, mediante sua divisão em glebas para produção pelo trabalho de parceiros e arrendatários vinculados perpetuamente à terra, veio a ser o precursor da servidão feudal.

Com a extinção do Império romano, os germanos lhe tomaram a maioria das terras e as dividiram comunitariamente, uma parte com todo o povo e a outra parte entre as diversas tribos e gens.

Os bosques e os pastos ficaram indivisos, para uso coletivo, e os campos agricultáveis foram divididos por sorteio, dentro das gens, entre os lares, famílias.

Com o tempo, a confusão entre germanos e romanos prejudicou a organização gentílica, a favorecer a transformação das gens germânicas em órgãos estatais. 

O primeiro rei franco, ao se converter de chefe militar em soberano, apropriou-se das propriedades do povo para transformá-las em domínio real para, em seguida, concedê-las em feudo a pessoas do seu séquito.

“E, dessa maneira, assentaram-se as bases de uma nova nobreza, às expensas do povo.”

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“Os camponeses livres donos de terras, que eram a massa do povo franco, foram arruinados e reduzidos à penúria pelas constantes guerras civis e, principalmente no reino de Carlos Magno, pelas de conquistas, como acontecera com aos camponeses romanos, em fins do período republicano”.2[2]


Fiados na promessa de terem proteção ante as atribulações das guerras e dos saques, esses camponeses procederam como haviam feito os da Gália, transferindo a propriedade das suas terras ao seu patrão, o senhor feudal, de quem tornavam a recebê-la em arrendamento vitalício, em troca de prestação de serviços e pagamento de tributos, e caíram na servidão ao cabo de algumas gerações. Id.

 A história conhecida através das leis célticas demonstra que ainda no século XI, antes da conquista inglesa, permanecia no País de Gales vestígio do costume gentílico do cultivo em comum das terras por comunidades inteiras, com repartição da colheita resultante. Nesse sistema, cada família da gens teria direito a cinco acres (dois hectares e fração) para o seu cultivo particular.3[3]

Aponta-se que, de conformidade com livros de jurisconsultos ingleses visitantes da Irlanda no século XVII, essas terras ainda eram de propriedade coletiva, exceto as que haviam sido convertidas em propriedade pessoal dos chefes, e eram redistribuídas com outras famílias gentílicas quando se extinguia uma célula econômica doméstica por morte de um membro da gens.

Os camponeses irlandeses, com a usurpação pelos ingleses, passaram a pagar aos usurpadores arrendamento pela exploração individual das terras que foram de propriedade comunitária Id.

2.                 A propriedade feudal e a servidão.

 

A propriedade feudal tinha um senhor, que poderia ser um rei, um príncipe, um conde ou outro aristocrata de grandes posses. Era o senhor feudal.

O proprietário feudal poderia arrendar as suas terras para exploração a outro senhor, normalmente nobre, e esse a outro, e o outro a outro, assim sucessivamente; no entanto, quem trabalhava diretamente a terra era apenas o último arrendatário, o trabalhador rural, o servo da gleba.

O senhor feudal poderia possuir mais de um feudo e assim ter mais de um castelo, todos fortificados, e as pessoas que lhe serviam eram seus vassalos, inclusive com a obrigação de se arregimentarem em seu favor nas guerras que viessem a travar, como os aldeões e os trabalhadores rurais nas suas terras, os servos.

Nos séculos XI e XII, as terras aráveis eram as que circundavam as aldeias, onde viviam os aldeões, e nelas trabalhavam diretamente os arrendatários dos senhores, sob regime de servidão (os servos).

Nas terras fronteiriças às aráveis, mais afastados das aldeias, se situavam os pastos, prados, bosques e ermos, que eram de uso comum.

Para o arrendamento aos trabalhadores rurais, sob regime de servidão, as terras aráveis eram delimitadas em duas partes, a parte maior – equivalente a 2/3 da área – era de fato arrendada e a parte restante permanecia nos “domínios” do senhor feudal, a qual o servo também era obrigado a trabalhar, gratuita e prioritariamente.

A parte arrendada não o era a um só arrendatário, mas dividida entre vários arrendatários; cujos respectivos cultivos eram espaçados, para cada arrendatário, em três faixas não contínuas, de modo que houvesse plantações diferentes em dois campos e o terceiro ficasse em pousio.

A média da totalização das faixas espaçadas, por cada arrendatário, era de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e em França, de 15 a 20 hectares.

Nessa relação de servidão, as terras dos “domínios” do senhor feudal havia de serem aradas em primeiro, semeadas em primeiro e ceifadas em primeiro, bem assim os produtos do senhor deveriam ser levados ao mercado para serem vendidos primeiro.

Se houvesse necessidade, o arrendatário servil era obrigado a fazer gratuitamente o serviço de construção ou reparação de uma obra nos domínios do senhor, a deixar o seu próprio trabalho de lado; mas deveria pagar ao senhor a utilização do seu moinho ou da sua prensa, caso deles precisasse.

A grande diferença de um servo para o escravo era que o servo somente poderia ter novo senhor se a terra, da qual era servil, tivesse a posse transferida a outro senhor; mas também não poderia ele, o servo, mudar-se para outro feudo sem o consentimento do seu senhor, pois ele era vinculado aquela terra em que morava e trabalhava.4[4]

Outra diferença do servo para o escravo é que o servo tinha a segurança da proteção do seu senhor feudal contra qualquer abuso por parte de outros senhores, mesmos nobres. Apenas o seu senhor poderia castigá-lo, de acordo com o direito costumeiro que vigia na época. Dentro do feudo, não havia lei de poder maior do que o poder do seu senhor. No feudo se observava o costume, com o senhor feudal ordenando as regras jurídicas, inclusive as posturas assim como as municipais hodiernas.

As obrigações dos servos para com os senhores e desses para com aqueles, como proteção em caso de guerra, eram estabelecidas e praticadas de acordo com esses costumes, nos quais se assentavam os tribunais dos senhores, para os casos de transgressões aos próprios costumes.

Uma demanda entre um senhor e um servo, no entanto, seria sempre resolvida favoravelmente ao senhor, visto que esse seria o próprio juiz da questão. Mas, senhores que violavam os costumes com frequência poderiam ser chamados a tribunais do seu senhor imediato; tendo havido notícia de que, na Inglaterra, camponeses podiam ser ouvidos no tribunal real.

A respeito da relação do servo com o senhor, escreveu Leo HUBERMAN:

“Havia vários graus de servidão, mas foi difícil aos historiadores delinearem todos os matizes das diferenças entre os diversos tipos. Havia os “servos dos domínios”, que viviam permanentemente ligados à casa do senhor, trabalhavam em seus campos durante todo o tempo, não apenas dois ou três dias na semana. Havia camponeses muito pobres chamados “fronteiriços”, que mantinham pequenos arrendamentos de um hectare, mais ou menos, à orla da aldeia, e os que nem mesmo possuíam um pequeno arrendamento, mas apenas uma cabana, e deveriam trabalhar para o senhor como braços contratados, em troca de comida.... Alguns vilões estavam dispensados dos “dias de dádiva” e realizavam apenas as tarefas normais de cultivo. Outros simplesmente não desempenhavam qualquer tarefa, mas pagavam ao senhor uma parcela da sua produção, de uma forma muito semelhante ao que fazem, hoje, os nossos meeiros.(*)[5] Ainda outros não trabalhavam, mas faziam seu pagamento em dinheiro.”5[6]

 

 O citado acadêmico norte-americano (**) argumentou que, em face das condições apresentadas em cada localidade nas várias fases do feudalismo, a situação dos cidadãos, aldeões e servos por vezes se confundiam de tal modo que dificultam a determinação da posição real de cada classe.Id.

No geral e em última instância, o rei era o dono das terras espalhadas pelo país, cujos arrendatários diretos do rei – nobres ou cidadãos – eram os “principais arrendatários”.

Como a terra praticamente produzia todas as mercadorias, a quantidade de terras pertencentes pelo senhor feudal era a medida da sua riqueza; ipso facto havia contínua disputa pelo apossamento de terras, a induzir guerras entre senhores, que os levavam a ter o maior número possível de vassalos para os enfrentamentos bélicos, mediante a subdivisão máxima das terras que possuíam arrendadas.

Entre os maiores proprietários de terras encontrava-se a Igreja. Esse patrimônio da Igreja fora constituído mediante doações e legados por variados motivos de fé e caridade, mas também por espólios de guerra repassados por reis e nobres.

 Pelas palavras de Leo HUBERMAN,

 

“... por esses e outros meios a Igreja aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço e metade de todas as terras da Europa Ocidental. Bispos e abades se situaram na estrutura feudal da mesma forma que condes e duques.”6[7][8]

 

O clero e a nobreza eram as classes governantes e a classe trabalhadora cultivava a terra, como alegada forma de pagamento por proteção espiritual e militar.

 Leo HUBERMAN resume o sistema do feudalismo com citação a Boissonnade:

“O sistema feudal, em última análise, repousava sobre uma organização que, em troca de proteção, frequentemente ilusória, deixava as classes trabalhadoras à mercê das classes parasitárias, e concedia a terra não a quem a cultivava, mas aos capazes de dela se apoderarem.”7[9]

O arrendamento tomado pelo servo era chamado de posse, mas era o título de posse que mantinha o servo, não o servo que mantinha o seu título.

Era o servo da gleba a produzir para o senhor no latifúndio feudal.

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[1](1) Frideriech ENGELS, op. cit. ps.119/122

(2) Id., ps. 105/7.

 (3) Ib., p. .

 (4) Leo HUBERMAN. A História da Riqueza do Homem,Parte I – Do Feudalismo ao Capitalismo,     1981, Zahar Editores, R. de Janeiro, ps. 5-17.

(*) Negrito não original.

(5) Leo HUBERMAN, op. cit., p. 9

(**) Professor Chefe do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Columbia, designado em 1938.

(6) Leo HUBERMAN, op. cit., p. 15.

(7) Id. p. 17.