A QUESTÃO AGRÁRIA
Um recorte histórico jurídico
Introdução
“O latifúndio se tornou a perdição de Roma”. Plínio 1
Este apanhado histórico, com viés jurídico, tem o simples e preciso propósito de apresentar elementos que demonstram a permanência da “questão agrária” como problema inerente ao sistema de produção rural com base na posse privada da terra, direito exclusivo de uma pessoa ao uso, gozo e disponibilidade de terras produtivas, consoante a origem romana do instituto2, sempre a exigir reformas fundiárias como ferramenta para o progresso social da humanidade.
Para essa consideração de relevância da posse sobre a propriedade, apreciou-se a maior importância objetiva que a primeira tem em relação à segunda para a exploração da terra como elemento de produção. Também juridicamente é de se ter em atenção que a posse é elemento fático integrativo do direito de propriedade, de inafastabilidade tal que a negligência pelo proprietário na manutenção da posse, pelo tempo marcado legalmente, o faz perder o próprio direito de propriedade por força do exercício da usucapião por quem efetivamente ocupa e explora o bem usucapiente.
Em que pese a adoção de reformas agrárias mais ou menos radicais, em várias épocas e em diversos países, a “questão agrária” é recorrente e reaparece com a renovação dos problemas sociais e econômicos, centrados no sistema de posse privada exclusiva da terra agricultável, especialmente no latifúndio.
Ultrapassado o período de proibição de alienação das glebas distribuídas no processo de Reforma Agrária aos pequenos agricultores, a tendência será sempre de remembramentos dessas glebas em novos latifúndios, como realidade imposta pelas forças do capital e do direito privado sobre a terra.
No presente, esses remembramentos têm por interesse a formação de modernizadas “plantations”, com uso intensivo da terra, de utilização técnica extremada e de emprego de mão de obra temporária que, sob a denominação de agronegócio (agribusiness), produzem “commodities”, base dos negócios financeiros das bolsas de mercadorias internacionais.
A “questão agrária” tem sido entendida por alguns economistas como o “Conjunto de problemas suscitados pelo nível de desempenho da agricultura num país que atravessa um processo de industrialização, e no qual o setor agrário se mostra incapaz de atender às necessidades sociais inerentes às transformações em curso.”
Essa conceituação é explicitada pelo cumprimento de funções que só a agricultura pode desempenhar neste passo histórico, quais sejam: “1) fornecimento de alimentos à crescente população urbana; 2) matérias-primas necessárias às indústrias em expansão; 3) liberação de mão-de-obra para as atividades urbanas; 4) aumento da produção com um número cada vez menor de trabalhadores; 5) geração de divisas para a importação de equipamentos 6) acumulação de capitais que devem ser drenados para o setor secundário e terciário”; concluindo-se que “O não cumprimento da totalidade desses requisitos configura a “”questão agrária”” como problema social, e não apenas econômico. Colocam-se então, as alternativas para ativar o setor, que sempre contemplam as alterações no sistema de propriedade da terra.”3
A questão agrária, porém, é ocorrente desde a antiguidade, com a mesma natureza social fundada, em primeiro plano, no sistema jurídico da posse privada da terra produtiva, que causa a um só tempo duas situações distintas, ambas de imensa gravidade social e econômica, quais sejam:
a) a de uns poucos privilegiados, detentores da posse privada juridicamente segura sobre grandes glebas de terras, derivada de concessão da potestade, de sucessão ou de conquista própria, via de regra eticamente fraudulenta, quando não violenta, que as mantêm inexploradas ou com exploração de baixa produtividade, ante a potencialidade do bem e as necessidades da sociedade em que se inserem, formadoras dos latifúndios; e
b) a da maior parte da população rural, a dos trabalhadores, quando não mais em situações de escravidão ou servidão, detentores de pequenos trechos de terras, muitas vezes mediante posses juridicamente precárias (arrendamento e parceria), insuficientes inclusive para a produção de subsistência própria e da sua família, constituintes dos minifúndios.
Acresce que esses trabalhadores rurais, expulsos do seus pequenos trechos de terra usurpados pelos mais poderosos, ou a eles abandonando em face da condição miserável de vida presente, e sem perspectiva melhor, quando não migram do campo para formarem as populações desprovidas das cidades (as favelas, os alagados e outras formas de vida infamante), se apresentam como mão-de-obra rural sub-remunerada, informal, temporária e insegura nas “plantations”, alcunhados de bóia fria, base laboral do agronegócio exportador de grãos e carne.
A “questão agrária” encontrará solução quando o sistema econômico planejado for capaz de garantir a posse segura e efetiva da terra à coletividade que nela planta, colhe e cria, seja pela forma de cooperação ou de empresa rural pertencentes à comunidade local, de modo que se possa proporcionar a descentralização da gerência das atividades inerentes e o compartilhamento comunitário da renda gerada pelo empreendimento.
Mas não basta só a efetuação da reforma fundiária para que o setor agrário realize com êxito a sua função de fator de justiça social e de desenvolvimento econômico. Nesse objetivo é necessário que os demais setores econômicos sejam organizados de modo a servirem, mais que ao enriquecimento ininterrupto dos “players” do mercado, ao efetivo desenvolvimento social e econômico do setor agrário, no objetivo de ofertarem os mais modernos suprimentos para a contínua melhoria da produção agropecuária e do desempenho no abastecimento de alimentos à população nacional, tais como a facilitação do acesso ao crédito, aos produtos das pesquisas e experimentações de culturas e criação,à irrigação adequada, aos instrumentos de mecanização, à armazenagem oportuna e à garantia de renda mínima.
Os principais substratos reais da “questão agrária” sempre foram o latifúndio, com magnitude, e o minifúndio, a sua não rara contraface.
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1(1) PLíNIO, apud Malta CARDOSO, Tratado de Direito Rural Brasileiro – Parte Geral, 2.º vol. – cont., 1954,Edit. Saraiva, S. Paulo, Edit. Saraiva, p. 264.
2(2)Messias JUNQUEIRA, As Terras Devolutas na Reforma Agrária, 1964, S. Paulo, p.12.
3(3) Dicionário de Economia – OS ECONOMISTAS, Consult. Paulo SANDRONI, 1985, Abril S.A. Cultural, S. Paulo, p. 360.