REFORMA AGRÁRIA, HOJE
No sábado 22/10/2022, a Folha de São Paulo, publicou a matéria O INCRA TROCA DESAPROPRIAÇÃO POR EMISSÃO DE TÍTULOS, em que se expõe o desmonte da reforma agrária pelo atual governo da República.
Noticia-se o desprezo à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, por conseguinte desde 2019 a se manterem intocáveis os latifúndios improdutivos não cumpridores da sua função social.
Também é noticiado que, divergentemente o INCRA distribuiu nos mesmo período títulos fundiários à mancheia, cerca de 350.000 (trezentos e cinquenta mil).
Disse Shakespeare, na peça Hamlet que “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”, o que muito deve se aplicar a essa situação exposta pela Folha de São Paulo.
Duas hipóteses se pode cogitar nessas ações desconcertantes, ambas possivelmente fraudulentas: Ou esses títulos são papéis sem nenhuma validade dominial, instrumentos de ação política eleitoreira, ou são ilegais, outorgados com descumprimento dos requisitos legais inarredáveis.
Para bem entender as hipóteses acima, necessário se faz esclarecer de alguns pontos primordiais sobre a atividade da reforma agrária, tais como distinguir imóveis rurais de terras públicas devolutas, desapropriação e discriminação, títulos de posse e títulos de domínio, títulos de ocupação legitimada e reconhecimento de domínio.
Mister considerar que a reforma agrária no Brasil realiza-se principalmente pelo instrumento da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, prevista no artigo 184 da Constituição Federal e regulamentada pela Lei n.º 8.629/92,
A desapropriação para fins de reforma agrária alcança os imóveis rurais que não cumprem com a sua intrínseca função social, que se revela pelos dados que os próprios proprietários declaram no Cadastro de Imóveis Rurais gerido pelo INCRA. Por esse meio, são identificados os latifúndios improdutivos, sujeitos à desapropriação, ao se conferir que eles não têm pelos menos 80% (oitenta por cento) de utilização da terra aproveitável ou 100% de eficiência na sua exploração.
O objetivo da desapropriação dos latifúndios improdutivos – que, por óbvio, não compreendem pequenas nem médias propriedades, ou imóveis produtivos – é a redistribuição fundiária com pequenos agricultores minifundiários e despossuídos de qualquer terra, mediante a implantação de projetos de assentamento. A redistribuição fundiária pode se dar para exploração individual ou comunitária, por forma cooperativa, associativa, condominial ou mista.
Assim que se apossa legalmente das terras desapropriadas, o INCRA outorga Contratos de Concessão de Uso aos agricultores que assenta mediante um procedimento específico essencialmente de natureza social, que conferem apenas posse, com o compromisso de outorgar de títulos de domínio quando consolidado o projetos de assentamento em que se localizam. Destarte, esses contratos não têm por escopo nenhum domínio, mas apenas posse, precária, resolúvel a qualquer tempo.
Os Títulos de Domínio (TD) e as Concessões de Direito Real de Uso (CDRU), que são inalienáveis por dez anos, contados da data da sua outorga, contêm cláusulas resolutivas e somente podem ser outorgados depois de consolidado o projeto de assentamento a que se relacionam e realizadas as medições e as demarcações topográficas das áreas a serem tituladas.
Noticiou-se oficialmente, porém que, para celeridade do procedimento, foram dispensadas essas medições e demarcações modernamente realizadas mediante georreferenciamento.
Ante os requisitos legais e o que se tem anunciado oficialmente, não é crível que a titulação desses cerca de 350.000 (trezentos e cinquenta mil) títulos tenham sido de domínio (TD) ou de concessão de direito real de uso (CRU). Teriam sido tão somente contratos de concessão de uso (CCU), que transmitem apenas posse precária, retomável a qualquer tempo pelo INCRA.
No entanto, se houve a outorga de títulos de domínio, ou de concessão de direito real de uso sem observância das condições legais de consolidação do projeto de assentamento a que se relacionam e da realização dos serviços de medição e demarcação topográfica, configuram-se aí atos ilegais, devendo haver a apuração de responsabilização penal por prevaricação ou, ao mínimo, emprego irregular de verbas.
No que se refere a terras devolutas, desde a primeira Constituição da República elas sempre foram atribuídas ao domínio dos Estados em que se encontram. Entretanto, as terras devolutas localizadas na faixa de fronteira nacional, que tem a largura de 150 Em (cento e cinquenta quilômetros), são do domínio da União Federal, tendo a sua administração regulada pela Lei n.º 6.634/79.
Terras devolutas são terras originariamente de domínio estatal mas que ainda necessitam ser identificadas e, se for o caso, separadas as de domínio privado, para então serem incorporadas ao patrimônio público.
Esse procedimento de apuração tem a denominação de discriminação de terras devolutas e pode se dar de modo administrativo ou judicial, em consonância com Lei n.º 6,383/76, que regula a espécie.
Ao cabo do procedimento discriminatório, com a realização dos trabalhos demarcatórios, ter-se-á, entre outros resultados, as terras devolutas apuradas, as propriedades privadas reconhecidas e as posses legitimáveis.
As terras devolutas então apuradas serão incorporadas ao patrimônio público por transcrição no registro público competente, mediante promovida pelo INCRA, ou pelo Estado titular do domínio.
Aos ocupantes de posses legitimáveis, o INCRA, ou o Estado, outorgará Licenças de Ocupação, com o prazo mínimo de quatro anos, ao fim dos quais, satisfeitos os requisitos de morada permanente no local, cultura efetiva da área e capacidade para desenvolvê-la, terá o titular preferência para aquisição do imóvel que ocupa, pelo valor histórico da terra nua, até 100 (cem hectares) e o que exceder pelo valor atualizado.
A Licença de Ocupação é intransferível intervivos e inegociável, não podendo ser objeto de penhora ou arresto, e ainda cancelável por inadimplemento do ocupante perante o INCRA.
A União Federal (titular das terras devolutas federais, de quem o INCRA é o representante por lei) pode em qualquer tempo também, por necessidade ou utilidade pública, cancelar a Licença de Ocupação outorgada, imitindo-se na posse da respectiva área e promovendo a sua desocupação dentro de 180 (cento e oitenta) dias, indenizando as benfeitorias por avaliação feita pelo INCRA.
A alienação e concessão de terras públicas situadas na faixa de fronteira, devem ainda ter o assentimento prévio do Conselho de Segurança Nacional, cujo ato da sua Secretaria Geral deverá se dar caso a caso.
O artigo 6.º da Lei n.º 6.634/79 prescreve a “nulidade de pleno direito”, entre outros atos, das alienações e concessões de terras públicas na faixa de fronteira outorgadas sem o prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional, além de coima aos responsáveis “de até 20% (vinte por cento) do negócio irregularmente realizado”.
Então é de se concluir que, frente a oficialmente alardeada titulação massiva e simplificada – sem georreferenciamento – de terras públicas na faixa de fronteira, pode o governo federal ter expedido ilegais licenças de ocupação canceláveis a qualquer tempo ou fteria procedido a alienações ou concessões sem atendimento aos requisitos legais indispensáveis, especialmente sem o assentimento prévio caso a caso do Conselho de Segurança Nacional, o que caracterizaria a prática reiterada de atos nulos de pleno direito, com as consequentes implicações de ordem administrativa, civil e penal.
Com efeito, trata-se de nefasta política governamental para aniquilar a reforma agrária, possivelmente com dilapidação do patrimônio público em grande monta,
Verificam-se, enfim, as seguintes práticas deliberadas pelo governo atual no objetivo do aniquilamento da reforma agrária popular e o avanço social do campo:
– desmobilização funcional do INCRA;
– criminalização do MST, inclusive com estímulo à sua confrontação por milícias privadas;
– abandono do reconhecimento das populações quilombolas pela Fundação Palmares e da falta de demarcação das suas áreas;
– absoluta desproteção das áreas indígenas, mormente com a suspensão das suas demarcações;
– desativação da desapropriação para os fins de reforma agrária, recomendada pelos artigos 184 da Constituição Federal;
– embotamento do apoio oficial necessário ao desenvolvimento sustentável das populações assentadas; e
– protecionismo à grilagem de terras, especialmente na Amazônia;
Neste passo histórico, ao novo governo de frente ampla democrática que suceder ao atual governo caótico no próximo ano, faz-se necessário proceder a ações emergenciais e estruturantes no campo da promoção social das populações pobres e espoliadas do campo, visando inclusive a segurança alimentar da população nacional.
São ações emergenciais que podem ser adotadas pelo novo governo democrático e popular:
– a revogação de todos os atos legais, regulamentares e administrativos que mandaram suspender novos assentamentos rurais em terras desapropriadas para a reforma agrária
– a desocupação das áreas tomadas pela “grilagem”, para de imediato devolvê-las aos povos delas originários, ou destiná-las à produção em assentamentos de agricultores minifundiários ou despossuídos de terras, c preservando-se ou se restaurando as reservas ambientais;
– a aceleração das regularizações das ocupações de terras públicas por pequenos agricultores ou despossuídos de terras, destinando-as à produção de culturas de alimentação popular;
– determinação da área máxima de regularização fundiária com observação dos módulos rurais fixados pelo INCRA;
– novo recadastramento nacional dos imóveis rurais, a se iniciar pela Amazônia, possibilitando-se a criação de uma nova plataforma que identifique os responsáveis pelos desmatamentos ilegais; e
– a inclusão dos desmatadores ilegais em cadastro restritivo de acesso a créditos rural e industrial.
As ações estruturantes de promoção social e desenvolvimento rural que podem contribuir, inclusive com a introdução de produtos de exploração agroecológica para o aumento da pauta de exportação nacional, são principalmente as seguintes:
– implementação de uma política agrária com foco especial na ampliação da produção de alimentos à população nacional, a ser coordenada pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, reestruturada inclusive para que possa desempenhar a articulação dos diversos setores governamentais com atividades vinculadas ao campo;
– reorganização do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, com vistas à retomada das suas atividades finalísticas com o melhor desempenho possível, especialmente na retomada das desapropriações dos latifúndios improdutivas, necessários à redistribuição para a diminuição dos fluxos de êxodo rural e de busca de terras virgens, na criação e no apoio sistemático ao desenvolvimento dos projetos de assentamentos, na regularização fundiária e na demarcação das terras de quilombos;
– criação de um órgão específico para os assuntos dos Povos Originários, diretamente vinculado à Presidência da República, com as funções de elaboração, coordenação e implementação de políticas para os povos do campo, da floresta e das águas,
– reestruturação do Programa de Agricultura Familiar e do Programa Nacional de Crédito Familiar, a serem complementados por um programa de Capacitação do Pequeno Agricultor com função essencial no desenvolvimento rural, voltados especialmente para os projetos de assentamento.
– estímulo à produção comunitária onde for socialmente recomendável, como nas áreas de quilombos e de outros povos tradicionais, inclusive com apoio à criação e desenvolvimento de cooperativas para o incremento da produção e o melhoramento da sua comercialização;
– apoio e assistência adequados à atividade do extrativismo florestal pelos núcleos indígenas já afetados pela proximidade de comunidades não indígenas.
– implementação de programa de estímulos a empresas rurais e agroindustriais para a maior absorção de mão de obra permanente local, com observância rigorosa das normas trabalhistas e previdenciárias, e para o cumprimento das políticas de preservação ambiental e desenvolvimento social;
– celebração de convênios com os Estados para que destinem a assentamentos produtivos de agricultores minifundiários e despossuídos as terras devolutas que lhes pertencem, promovam a assistência técnica na implementação e desenvolvimento dos assentamentos em geral e procedam às atividades técnicas de regularização das terras públicas ocupadas por posseiros.
No presente quadro de desmazelo urdido e praticado pelo governo federal, essas são as ações mínimas, emergenciais e estruturantes, que podem resgatar a política de reforma agrária e retomar o progresso no campo, pilares para o avanço social e o desenvolvimento nacional.
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