sexta-feira, 26 de julho de 2024

A QUESTÃO AGRÁRIA - CAPÍTULO V As terras nas Constituições republicanas do Brasil. Pedro Cordeiro da Silva

 

CAPÍTULO V

As terras nas Constituições republicanas do Brasil.

 1.     1891 - A primeira Constituição republicana.

Descreveu Octaciano NOGUEIRA, l

“No dia 3 de dezembro de 1889, dezoito dias depois da proclamação da República, portanto, o governo provisório do Marechal Deodoro baixou o Decreto n.º 29, criando uma comissão de cinco membros, para elaborar o projeto da Constituição republicana. No dia 21 de dezembro, dezoito dias depois, portanto, convocou a Assembleia Constituinte.” 1[1]

O projeto elaborado pelos cinco membros designados pelo Governo Provisório foi revisado por Rui Barbosa antes de ser objeto de decreto governamental, publicado ad referendum da Assembleia Constituinte, cujas sessões se iniciaram aos 15 de novembro de 1890, precisamente na data do primeiro aniversário da República.

“Em 24 de fevereiro de 1891, isto é, três meses e dias depois de instalada, a Constituinte republicana publicava a Constituição aprovada.”(Idem)

Francisco de Assis ALVES assinalou que a Carta de 1891 fez brotar a república liberal, implantou no Brasil o regime representativo, calcado no modeloamericano.2

O primeiro diploma constitucional republicano assegurou o domínio particular aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, em toda a plenitude, salvo caso de desapropriação, nos termos do seu artigo 72, § 17.

O instituto da desapropriação na Constituição Imperial, inserto pelo Ato Adicional de 1834, não teve os seus elementos basilares modificados pela primeira Constituição Republicana, senão que apenas acrescentada, à motivação de utilidade pública, a motivação de necessidade pública (Art. 72, § 17).

A desapropriação prevista, por necessidade ou utilidade pública, não abrangia reforma fundiária, nem poderia mesmo abranger porque se tratava de uma Constituição produzida sob os influxos do liberalismo econômico mais tradicional.

A indenização prévia permaneceu, tendo permanecido “conditio sinequa non”, pela alta despesa pública que demandaria, objetava qualquer desvelo de instituição de desapropriação no interesse social, mormente para fins de reforma agrária.

A Constituição republicana de 1891 não trouxe nenhuma disposição que classificasse os bens públicos, mas dispôs sobre a atribuição do domínio das terras devolutas aos Estados em cujos territórios elas se situassem, com a ressalva de caber à União Federal a porção do território indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. (Art.64).

Ante a omissão constitucional sobre a largura do território indispensável para a defesa das fronteiras e demais finalidades que elencou, é de concluir-se que permanecia esse territórioa faixa de fronteiras – com a dimensão para o interior fixada pela Lei de Terras de 1850, qual seja dez léguas (sessenta quilômetros).

A reserva de domínio da União, sobre as terras devolutas que servissem a qualquer das finalidades apontadas no citado artigo constitucional, é notoriamente fundada em razões de defesa nacional e, no caso específico das estradas de ferro, parece também demonstração do interesse na integração das populações fronteiriças ao restante território nacional.

Os terrenos indispensáveis a fortificações, construções militares e estradas de ferro federais, assim que efetivamente destinadas a esses fins deixavam de ser terras devolutas, para se tornarem espécie de bens públicos de uso especial.

   2.                1934 - A Constituição socialdemocrata.

No Brasil, vitoriosa a revolução liderada por Getúlio Vargas, com a publicação do Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, instituidor do Governo Provisório da República com plenos poderes discricionários, determinou-se a dissolução do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas estaduais e das Câmaras Municipais. Contudo, foram preservadas a continuidade do exercício do Poder Judiciário e a vigência em tese das Constituições Federal e estaduais, bem ainda das legislações e regulamentações legais dos três níveis da Federação, ainda que todas sujeitas às modificações e restrições por aquele decreto ou por outros ulteriores do Governo Provisório, ou de seus delegados nas esferas de atribuições de cada um (Artigos 1.º a 4.º).

Prenunciou-se um avanço sobre a questão agrária nacional com o Decreto n.º 19.924, de 27 de abril de 1931, editado na linha do espírito reformista socialdemocrata inspirador do Governo revolucionário, cujo artigo segundo firmou que, na concessão das terras devolutas, se procurará sempre facilitar e estimular a formação de pequenas propriedades e a sua ocupação efetiva, e cultura, pelos concessionários. 

Prevista no artigo 12 do Decreto n.º 19.398 de 1930, a nova Carta Magna foi promulgada por Assembléia Nacional Constituinte que a fez publicar na data de 16 de julho de 1934.

 Celso Ribeiro BASTOS disse a respeito da natureza da Constituição de 1934 que “Esse Estatuto Político, a par de assumir teses e soluções da Constituição de 1891, rompeu com a tradição até então existente, porque, sepultando a velha democracia liberal, instituiu a democracia social, cujo paradigma era a Constituição de Weimar”. 3[2]

No entendimento de BASTOS:

“A matiz dominante dessa Constituição é o caráter democrático com um certo colorido social. Procurou-se conciliar a democracia liberal com o socialismo no domínio econômico-social;” bem ainda que “Finalmente, há o lado social da Constituição que resultou da necessidade de atender à massa urbana proletária existente, sobretudo, nas ferrovias e nos portos.” 4 -5[3]

A Constituição de 1934, conquanto de efêmera existência, substituída que foi pela autoritária Carta de 1937, inovou no Brasil ao introduzir princípios e normas de Direito Social, não realizados por legislação regulamentar da matéria, ao menos referente ao setor agrário. Assim foi que o reconhecimento dos sindicatos e associações profissionais não se aplicou aos trabalhadores rurais (Artigo 120).

Outro ditame dessa Constituição que não se cumpriu com inteireza no que respeita ao trabalhador rural foi o inserto no Artigo 121 que comandou: “A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho” (sic); com a determinação programática de que essas condições no trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, a se procurar fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas(art. cit., § 4.º).

Quanto ao aspecto de reforma fundiária com vistas à destinação da propriedade agrária à sua intrínseca função social, a Constituição de 1934 avançou com subordinar a garantia do direito de propriedade privada à condição do seu exercício em conformidade ao interesse social ou coletivo, no entanto sem prever sanção para o descumprimento dessa condicionante, a remeter o assunto para a forma que a lei determinar (Artigo 113, item 17).

  O instituto da desapropriação permaneceu somente por motivos de necessidade ou de utilidade pública e mediante prévia e justa indenização (it. cit.); o que impossibilitava de fato que fosse ele usado como instrumento de reforma agrária, seja por que essas motivações juridicamente não justificariam a desapropriação por interesse social – de que é que se trata, na verdade – seja porque o tesouro público não teria os recursos suficientes para realizar tão imensa tarefa expropriatória com os pagamento das indenizações à vista e previamente ao desapossamento privado.  

Notável foi a criação da usucapião pro labore, pela qual todo brasileiro, não proprietário rural ou urbano, que possuísse por dez anos consecutivos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terras com até dez hectares, tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio desse solo mediante sentença declaratória transcrita em registro de imóveis (art. 125).

A Constituição de 1934, ao dispor sobre os bens públicos, aí incluídas as terras, estipulou que tanto os de domínio da União Federal quanto os de domínio dos Estados são os que a cada um deles já pertenciam respectivamente, nos termos da legislação então em vigor.

Na classificação estabelecida pelo Código Civil então vigente, Lei n.º 3.071 de 1.º de janeiro de 1916, os bens públicos de uso especial compreendiam as terras públicas destinadas à colonização, que poderiam ser federais ou estaduais, e os bens dominicais compreendiam aqueles integrados ao patrimônio público sem uso público e desafetados de qualquer destinação especial, e as terras devolutas que, ainda por efeito do disposto no artigo 64 da Constituição de 1891, pertenciam aos Estados onde se encontrassem, no entanto excluídas as situadas na faixa de fronteira nacional, pois essas pertenciam ao domínio da União Federal.

A Constituição Federal de 1934, tendo em vista a defesa nacional entre outras causas, atribuiu ao Poder Executivo federal a regulamentação da utilização das terras públicas pela União e pelos Estados, não a concessão ou alienação delas.

A concessão de terras, qualquer que fosse, dentro da faixa de fronteira nacional, delimitada em cem quilômetros pela Constituição de 1934, ficou condicionada à audiência do Conselho de Segurança Nacional, sem a qual não seria válida.

A alienação de terras públicas na faixa de fronteira, ainda por disposição da Constituição de 1934, somente se poderia efetuar com a aprovação do Poder Legislativo (artigo 166, § 3.º).

A se considerar essas disposições constitucionais, aparentemente conflitantes, incluídas no Título da Segurança Nacional (VI), é de concluir-se que o diploma maior de 1934 considerou a concessão de terras públicas na faixa de fronteira nacional como uma cessão de direito real de usufruto, para a qual bastaria o assentimento do CSN, enquanto a alienação delas somente seria possível mediante autorização de lei, restrita ao domínio útil do bem – enfiteuse, ou aforamento – como os terrenos de marinha.

O entendimento de que a concessão de terras na faixa de fronteira seria espécie de cessão de direito real de usufruto se extrai também ao verificar-se que outra disposição da mesma carta constitucional exigia para a concessão de terras com área superior a dez mil hectares, situadas em qualquer parte do território nacional e de qualquer titularidade pública, autorização do Senado Federal, caso a caso (Artigo 130).

Nesse outro contexto, abrangente de todo o território nacional, cuidava-se mais de proteger o patrimônio público da sua dilapidação por meio de más administrações governamentais.

O certo é que, no conjunto dessas disposições constitucionais acerca das terras públicas não se encontra nenhuma norma programática de assentamentos de pequenos rurícolas e de trabalhadores rurais, conquanto o artigo 121 da própria Constituição haja ditado princípio de preferência ao trabalhador nacional na colonização e aproveitamento das terras públicas.

A Constituição socialdemocrata de 1934, ao não dispor normas efetivas para o disciplinamento da reforma agrária no Brasil, omitiu-se quanto à oportunidade de dar viabilidade material a dispositivos com esse caráter implícito editados ainda no antigo regime da Constituição liberal de 1891, pelo Presidente Nilo Peçanha, no bojo do Decreto n.º 8.072, de 20 de junho de 1910, pelo qual foi criado o antigo Serviço de Proteção aos Índios – SPI.

Ao dispor sobre as terras necessárias para a promoção da instalação dos Centros Agrícolas para localização de trabalhadores nacionais que previra (arts. 22 e 23), o referido decreto governamental estabeleceu que seriam preferenciais as doadas pelos Estados e municípios (art. 26, par. único), ao passo que previa a aquisição de terras particulares por composição amigável, (art. 27), e “só em caso extremo” (sic) empregar-se-ia o recurso da desapropriação.

Houvesse a Constituição de 1934 estatuído normas explícitas que abrigassem e propiciassem a materialização dos objetivos dispostos pelo Decreto n.º 8.072 de 1910 ter-se-ia aí a primeira lei de reforma agrária no Brasil.

O Decreto n.º 8.072 de 1910 não dispôs uma nomenclatura própria à reforma agrária nem um plano tecnicamente organizado nesse sentido, nem ainda a especificação das terras particulares a serem abrangidas e dos recursos financeiros necessários para a implementação da política de terras engendrada para os assentamentos dos camponeses, mas dispôs especificadamente sobre os requisitos e as ações realizadoras de enfrentamento da questão agrária então presente, bem assim sobre os procedimentos administrativos necessários para tal, a se ver:

a) a indicação de terras particulares para o assentamento dos trabalhadores nacionais, inclusive por desapropriação, embora obstaculizada a execução dessa ação pela não existência de norma constitucional prevendo-a por motivo de interesse social e por ser demais dispendiosa ao erário, em vista da exigência de prévia indenização (art. 27);

b) a fixação dos lotes dos assentamentos no mínimo de 25 hectares e no máximo de 50 hectares, como nítida medida contra a constituição de novos latifúndios e também de novos minifúndios (art. 34);

c)  a emissão de títulos de propriedade definitiva ou provisória aos trabalhadores assentados, com cláusulas resolutórias relativas à indisponibilidade dos lotes a pessoas não habilitadas legalmente à aquisição dos mesmos, à proibição do absenteísmo na exploração rural e à má conduta social (arts. 35, 46 e 47);

d) a possibilidade de aquisição dos lotes pelos trabalhadores assentados para pagamento em até seis anos, com carência de 24 meses (arts. 35, caput e 37);

e)  o benefício de redução em 30% do preço dos lotes aos trabalhadores assentados que, dentro de quatro anos, houvessem cultivado com sucesso a área do seu lote (art.35,§ 2.º);

f)   a obrigação dos trabalhadores assentados de cultivarem pessoalmente os seus respectivos lotes, inclusive neles se estabelecerem com a sua família, em as tendo (art. 39, § 1.º);

g)  a obrigação pelos trabalhadores assentados em não terem criação extensiva de animais (art. 39, § 2.º);

h) a obrigação aos trabalhadores assentados de não disporem dos seus lotes e das benfeitorias neles constituídas de modo que lhes impeça de os cultivarem livremente, até que obtenham os respectivos títulos de propriedade (art. 39, § 3.º);

i)    a assistência e instalações de educação básica e de aprendizado agrícola, com oficinas, campos de experimentação e de demonstração, inclusive de beneficiamento dos produtos da lavoura dos trabalhadores assentados (art. 31);

j)    a promoção de estímulos à produção de culturas pelos trabalhadores assentados (art. 43);

k)  a promoção de ações de preservação florestal nos Centros Agrícolas (arts. 29 e 35, § 2.º).

 

Também ressaltam do Decreto n.º 8.702 de 1910os dispositivos que buscam a compatibilização das ações de instalação e direção dos Centros Agrícolas com as de proteção aos indígenas e contra a invasão dos territórios deles. (Capítulos I a IV do Título I – DA PROTECÇÃO AOS ÍNDIOS, e art. 51); que direciona o estabelecimento dos Centros Agrícolas “em boas terras de cultura, apropriadas à lavoura mecânica, dotadas de perfeitas condições de salubridade, de mananciais ou cursos de água potável, servidas de meios fáceis de comunicação e próximas dos mercados consumidores” (art. 23); que estabelece a criação imediata de até dois Centros Agrícolas, de preferência em “zonas cortadas por estadas de ferro da União”, compreensíveis como projetos piloto (art. 24), com a previsão da sua multiplicação (art. 25).

A atividade de colonização rural foi atribuída concorrentemente à União e aos Estados pelo artigo 10, IV, da Constituição, para complementarmente dispor que “A União promoverá, em cooperação com os Estados, a organização de colônias agrícolas, para onde serão encaminhados os habitantes de zonas empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho.’ (Artigo 121, § 5.º)

 Esse último citado dispositivo constitucional foi na verdade um comando destinado a servir de instrumento jurídico para a transferência de populações do seu “habitat” natural, os sertões do semiárido, para o eldorado imaginado,  as bordas da floresta Amazônica.

Essa ação estatal de transferência de populações veio de fato a se dar no início dos anos de 1970, mediante a implantação de projetos de colonização e agrovilas, com famílias de rurícolas sertanejos nordestinos, nas margens da rodovia Transamazônica, via transversal do extremo Nordeste oriental até os confins da Amazônia ocidental.

Melhor se teria laborado na Constituição se se houvesse objetivado e programado, além de generalizadas previsões orçamentárias (art. 177), as obras e ações possíveis de amainar os efeitos das secas prolongadas no semi-árido de modo que se dispusessem aos seus habitantes meios e instrumentos para uma vida minimamente digna no seu espaço de vivência original; tal como a transposição das águas do Rio São Francisco, projetada desde o tempo do Império, mas somente iniciada bem recentemente, ora em operação parcial e em vias de conclusão definitiva.

A Constituição de 1934 permaneceu com a competência dos Estados para a tributação da terra, a decretação, o lançamento, a arrecadação e a apropriação da renda do imposto sobre a propriedade territorial rural (art. 8.º, I, “a”), mas sem conferir qualquer funcionalidade a esse tributo como instrumento de reforma agrária. No entanto, atribuiu-se ineficazmente aos Municípios certo imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais (Art. 13, § 2.º, IV). 

A Constituição de 1934, dispôs no Artigo 5.º, XIX, “c”, que ficava reservado à União Federal legislar sobre normas fundamentais de Direito Rural.

O Direito Rural aí considerado não é sinônimo do Direito Agrário moderno, de natureza social, que enfoca precipuamente a questão agrária, exsurgente das relações de propriedade, posse e trabalho das terras não urbanas.

A denominação Direito Rural revela uma abrangência do objeto da matéria tratada maior do que a clássica, qual seja a do Direito da Agricultura, porque este é restrito às atividades produtivas diretamente da agricultura e da pecuária.

Essa maior abrangência no alcance do objeto do Direito Rural encontra correspondência, entre outros na doutrina de Joaquim Luís OSÓRIO4[4]e de Francisco Malta CARDOSO5[5], em que se incluem as atividades industriais, as comerciais e as de transportes conexas ou acessórias à atividade agrária, a exemplo do beneficiamento de produtos – agroindústria - e o comércio da produção, inclusive a exportação, como as commodities agrícolas. 6[6]

Nesse sentido amplo do Direito Rural, o Governo Provisório revolucionário, antes mesmo da Constituição de 1934, criou o Instituto do Açúcar e do Álcool pelo Decreto n.º 22.789, de 1.º de junho de 1933, e, ao tempo do governo democrático de Getúlio Vargas, em 22 de dezembro de 1952, pela Lei n.º 1.779, foi criado o Instituto Brasileiro do Café.

Ambos os Institutos, entes da administração indireta federal com natureza autárquica, não se destinaram a promoção direta de programas de caráter social, conquanto fossem aparelhados com atribuições legais para intervir no domínio econômico. Essas atribuições intervencionistas tinham por fim principal resguardar os titulares das “plantations” de cana-de-açúcar e de café, bem assim os exportadores das respectivas “comodities” das oscilações de valor de mercado prejudiciais às suas atividades, mediante um sistema de garantia de preço mínimo aos seus produtos.

O estranhável na Constituição de matiz socialdemocrata de 1934 foi a sua omissão com relação às normas positivas de Direito Agrário progressista editadas pelo Decreto n.º 8.072 de 1910, baixadas antes mesmo da reforma agrária reivindicada pelo movimento camponês mexicano(1911) e da deskulakização7[7],confisco dos latifúndios na grande Rússia para redistribuição aos mujiques8, encetada com a vitória da revolução soviética de 1917.

A Constituição de 1934, que instituíra normatização modernizante política, social e econômica do Estado brasileiro, teve existência demasiada curta para a realização efetiva dos seus princípios, instrumentos e objetivos, eis que substituída pela Constituição outorgada a 10 de novembro de 1937 pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas.

Para o enfrentamento da questão agrária no Brasil, no período de vigência da Constituição de 1934, faltou essencialmente a normatização da desapropriação dos latifúndios de modo suportável financeiramente para o estado brasileiro, inserida no próprio texto constitucional, e das ações objetivas para a realização efetiva de uma reforma agrária, disposta ao mínimo como a contida no Decreto n.º 8.072 de 1910.

3.     1937 - A Constituição protofascista.

A Constituição de 1891 teve a sua forma e o seu conteúdo de puro liberalismo – laissez faire, laissez passer – substituídos pelo regramento socialdemocrata da Constituição de 1934 e essa teve a sua forma e o seu conteúdo substituídos pelos da Constituição outorgada de 1937, de caráter marcadamente fascista, a seguir a tendência adotada pelos regimes políticos estabelecidos na Itália, por Benito Mussolini; na Alemanha, por Adolf Hitler; em Portugal, por António Salazar; e em Espanha, por Francisco Franco.

Disse Francisco Brochado da ROCHA, em comentário à Constituição de 1937:

“Disciplinando a ordem econômica num sentido nacional e num sentido social, o Estado Novo brasileiro, a salvo de todos os exageros doutrinários, edifica, no sistema que adota, um exato equilíbrio do indivíduo com a coletividade”. (9)[8]

A Constituição de 1937, na direção dos direitos sociais, não foi além dos direitos trabalhistas alinhados no artigo 137 e da usucapião pro labore (art. 148),inclusive deslembrada que foi a função social da propriedade e, por conseguinte, a instrumentalidade jurídica para a realização de propósitos de justiça social, tais como a desapropriação por interesse social e o imposto progressivo sobre a terra.

Mantiveram-se as desapropriações apenas por necessidade e utilidade pública, mediante prévias indenizações, (art. 122, 14) e a competência dos Estados para a decretação de imposto sobre a propriedade territorial rural (art, 23I, “a”).

A Constituição de 1937, ainda que tenha disposto um elenco de direitos protetores ao trabalhador (art. 137), ajusta a Justiça do Trabalho (art. 139) dentro do contexto que contempla a classe trabalhadora como elemento de composição de uma sociedade econômica corporativa, em que sobrelevam a ela o Estado e a propriedade privada dos meios de produção, expressa, a exemplo, pelo seu artigo 138:

 “Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de poder público.”

Disposições que marcam o propósito de se usar a massa trabalhadora organizada como elemento de composição corporativa da economia, acima de considerações de justiça social, são as inclusas no capítulo DO CONSELHO DE ECONOMIA NACIONAL (arts. 57 a 63).

Ao Conselho de Economia Nacional foram conferidos mecanismos legais e administrativos para a organização e coordenação da economia corporativa nacional, sem a devida atenção para a melhoria social da classe trabalhadora, como se vê das suas atribuições dispostas no art. 61, máxime as seguintes:

“a) promover a organização corporativa da economia nacional; ........................................................................................................

e) organizar, ..., inquéritos sobre as condições de trabalho, da agricultura, da indústria, do comércio, dos transportes e do crédito, com o fim de incrementar, coordenar e aperfeiçoar a produção nacional;

f) preparar as bases para a fundação de institutos de pesquisa que, atendendo a diversidade das condições econômicas, geográficas e sociais do país, tenham por objeto:

I – racionalizar a organização e administração da agricultura e da indústria;

II – estudar os problemas do crédito, da distribuição e da venda, e os relativos â organização do trabalho.

.......................................................................................................

h) propor ao Governo a criação de corporações de categorias. (sic)

A composição do referido Conselho, consoante o art. 57 constitucional, compreendia paritariamente representantes dos empregadores e dos empregados em cada uma das cinco seções em que ele se subdividia, a saber: de indústria e do artesanato; da agricultura; do comércio; dos transportes; e do crédito.

Ao presidente da República competia indicar até três componentes para cada uma dessas seções e um ministro de Estado para presidir o Conselho.

 Como uma espécie de concessão do poder autoritário, previa-se a permissão nas reuniões das seções desse Conselho “de representantes de sindicatos ou associações de categoria compreendida em algum dos ramos da produção nacional, quando se trate de seu especial interesse”, sem direito a voto (art. 59, § 2.º).

A Constituição de 1937 foi silente no que respeita ao uso e à destinação das terras públicas, mesmo quanto às situadas na faixa de fronteira.

Como as disposições contidas nos artigos 36 e 37 dessa Constituição se restringissem a declarar que são do domínio da União e dos Estados os bens que, respectivamente, já lhes pertencem nos termos da legislação vigorante, é de se concluir que as terras devolutas permaneceram de propriedade dos Estados onde elas se localizavam, com exceção das localizadas na faixa de fronteira nacional.

Ainda que não houvesse declarado explicitamente o domínio da União Federal sobre os territórios indígenas, a Constituição de 1937 reconhece, nos termos do seu art. 154, a posse dos “silvícolas” sobre as terras em que se achem localizados em caráter permanente, vedado a eles a alienação delas,a acompanhar os passos da Lei n.º8.072, de 20.06.1910.

A Constituição de 1937 reproduziu, contudo, uma norma de cariz social constante da Constituição anterior, ao acolher a usucapião pró-labore, nos seguintes termos:

“Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.” (art. 148)

A usucapião pró-labore acolhida pela Constituição Federal de 1937 contemplava com exclusividade os brasileiros, trabalhadores rurais despossuídos que labutavam em terras não públicas, pois para as públicas o instituto aplicável era o da legitimação de posse.

Para a outorgada Constituição de 1937 não havia questão social agrária a resolver; havia promoção do corporativismo, base econômica de um estado fascista.

4.                1946 – A Constituição da redemocratização.

A Constituição Federal de 1946 foi a da “redemocratização” do Brasil que, com o fim do autoritário Estado Novo liderado por Getúlio Vargas, necessitava se inserir no novo tempo histórico inaugurado pela vitória dos países aliados, principalmente da União Soviética e dos Estados Unidos sobre os países do eixo nazifascista, encabeçados pela Alemanha, a Itália e o Japão.

No cenário histórico imediatamente posterior à Segunda Grande Guerra, realçou-se a União Soviética como a grande demolidora do estado alemão fascista, a maior máquina de guerra até então, a consolidar-se internamente e a prestigiar fortemente em dimensão mundial os princípios e a práxis do socialismo real, que viria a influenciar na libertação nacional dos países da Ásia e da África, até então colonizados pelas potências européias, e no revigoramento das normas de conduta nacionais de fundo social, essencialmente contemplativas do proletariado.

A Constituição brasileira de 1946 não divergiria dessa tendência mundial de construção de normas sociais protetoras do proletariado, como se fez com o reconhecimento da autonomia do Direito do Trabalho, com os próprios princípios, legislação, organização judiciária e aparelhamento de intervenção administrativa na sociedade. (Vide arts. 5.º, XV, “a”, 94, V, 122 e segs., 157, 158 e 159.

A proximidade geopolítica com os Estados Unidos, país hegemônico no mundo ocidental a partir de então, influiu mais fortemente no assentamento dos mais importantes princípios da política em geral, e especialmente da política econômica,pela Constituição de 1946, que esposou, com alguma moderação, os da iniciativa privada e livre mercado adotados por aquele país norte-americano.

Hermes Lima, deputado constituinte à época e que viria a ser ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou que “a obra seria mais de restauração do regime destruído pelo golpe de 1937”, ao que aduziu Aliomar BALEEIRO, que também viria a ser ministro da Suprema Corte:

 

“E, realmente, essa tendência restauradora das linhas de 1891 com as inovações aproveitáveis de 1934 (disposição de proteção aos trabalhadores, à ordem econômica, à educação, à família, etc.) foi característica do texto que veio a ser promulgado com grande entusiasmo no dia 18-9-1946...”(1)[9]

 

A parca normatização de fundo socialdemocrata inserida no texto constitucional de 1946 foi obra coletiva de constituintes comunistas (PCB) e trabalhistas (PTB), os quais contaram com a colaboração dos integrantes da esquerda democrática, imbricada na liberal União Democrática Nacional (UDN), núcleo fundador do Partido Socialista Brasileiro (PSB), e de antigos “getulistas” populares, tal como Agamenon Magalhães, ex-ministro da Justiça e depois governador de Pernambuco, prócer do conservador PSD.2[10]

A tentativa de conciliação entre os princípios políticos e econômicos liberais com algo de socialdemocracia resultou em uma Constituição que se pode caracterizar como liberal social, expressada solenemente no primeiro artigo do título Da Ordem Econômica e Social:

 

“Art. 145. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.”

 

Esse enunciado exprime a intervenção estatal no domínio econômico, a afastar decididamente o velho liberalismo laisser faire, laisser passer do setor produtivo nacional, mas sem ousar além da proclamação de uma idéia de justiça social sem normas de materialização eficazes, afora as do Direito do Trabalho que se aplicavam aos trabalhadores de atividades urbanas e se estendiam até aos da agroindústria, mas não abrangiam os das atividades essencialmente rurais.

A intervenção estatal está explícita no artigo 146 da Constituição de 1946, que autoriza:

 

“A União poderá, mediante lei especial intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade.”

 

Na realização dessa intervenção estatal, o governo democrático de Getúlio Vargas promulgou em 03 de outubro de 1953 a Lei n.º 2.004, que instituiu o monopólio estatal de toda a atividade petrolífera nacional, desde a pesquisa mineral e lavra à refinação dos produtos e transporte,inclusive dos seus derivados e dos gases raros, seja por navios ou condutos. (art. 1.º)

A Lei n.º 2.004 de 1953 atribuiu o exercício das atividades então monopolizadas ao Conselho Nacional do Petróleo, como órgão orientador e fiscalizador, e à Petróleo do Brasil S.A. - PETROBRÁS, empresa de economia mista, como empresa executora.

Quanto à questão agrária, a Constituição de 1946 ficou nos princípios norteadores para o seu enfrentamento – justiça social, função social da propriedade - e no mero propósito de desapropriação por interesse social; mas não proveu o estado com os instrumentos necessários para o enfrentamento do problema, tais como a desapropriação dos latifúndios para o fim de reforma agrária sem prévia indenização em dinheiro; a progressividade da tributação sobre a terra, de acordo com o seu mau uso e sua má produtividade; a regulação dos modos de redistribuição fundiária, inclusivamente o assentamento comunitário ou coletivo; e um ente específico para o planejamento e a execução das atividades reformistas.

Os princípios de justiça social e função social da propriedade foram expressos pela Constituição de 1946 nos seguintes termos:

 

a)     O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos (art. 147);

b)    É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. (art. 141, § 16)

 

Na Constituição de 1946 optou-se pela legitimação de posse e a usucapião pro labore, bem ainda pela colonização de terras públicas, em evidente desatenção à reforma agrária, que implicaria em extinção do latifúndio:

 

“Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem do campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas...

§ 1.º Os estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para a aquisição de até vinte e cinco hectares.

                  ........................................................................................................ 

§ 3.º Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença devidamente transcrita.”

 

A tributação da terra, em que pese permanecer sem progressividade sobre os latifúndios, passou a ser isenta para as propriedades com até vinte hectares, quando os seus respectivos proprietários não possuíssem outros imóveis e os cultivassem só, ou com a sua família (art. 19, § 1.º), a beneficiar os pequenos proprietários rurais.

Pelo seu artigo 156,§ 2.º, a Constituição Federal de 1946 reafirmou normas constantes da Carta anterior exigentes de “... prévia autorização do Senado Federal ... para qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares”(sic), obviamente inclusas as terras devolutas estaduais; a necessidade indispensável de prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional para a concessão de terras devolutas na Faixa de Fronteira, que permaneceram no domínio da União Federal por indispensáveis à defesa do país (art. 34, II); e  a submissão  da utilização dos imóveis situados na Faixa de Fronteira a regulação legislativa. (art. cit., § 1.º).

A Constituição de 1946 não incluiu as terras indígenas entre os bens da União Federal; mas também não se pode considerar que elas deixaram de os integrar, vez que a relação disposta dos bens de domínio federal constitucional, ao comandar que “Incluem-se entre os bens da União” (art. 34), demonstra não ter sido exaustiva.

É evidente que a relação de bens de domínio federal disposta pelo artigo 34 da Constituição de 1946 não foi exaustiva e que, portanto, outros bens ali não elencados podiam ser de domínio da União Federal, considerando-se que a normatização relativa ao domínio e posse das terras indígenas nem sequer foi aludida no texto constitucional e, por outra face, não houve óbice constitucional a impedir a recepção da normatização vigente anteriormente sobre a matéria na nova ordem jurídica nacional.

Assim, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1946 o dispositivo do artigo 10 da Lei n.º 5.484 de 1928, que mandou fosse promovida ”a cessão gratuita para o domínio da União das terras devolutas pertencentes aos Estados, que se acharem ocupadas pelos índios, bem como a das terras das extintas aldeias, que foram transferidas às antigas Províncias pela Lei de 2º de outubro de 1887”, cuja  posse pelos indígenas deveria ser respeitada, nos termos do artigo 216 da mesma Constituição.

A cumprir a autorização constitucional para atribuir a um ente federal específico as atividades de seleção, entrada, distribuição e fixação de imigrantes (art. 162), a Lei n.º 2.263, de 05.01.1954, criou a autarquia federal denominada Instituto Nacional de Imigração e Colonização INIC, com atribuição também de proceder acesso dos nacionais à pequena propriedade agrícola(Lei cit., art. 3.º, “c”).

Afora a transferência para o patrimônio do INIC de todos os imóveis pertencentes à União Federal, que estavam sob a administração da Divisão de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura e do Departamento Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho (art. 7.º), obviamente destinados a núcleos de colonização com imigrantes, outras terras não lhe foram indicadas nem lhe foi delegada ou atribuída qualquer competência para procedimentos de assentamentos rurais diferentes da colonização, ou ainda dotações orçamentárias para outros fins que não a colonização.

Conclusão é que a Constituição Federal de 1946 ficou a dever à nação a reforma agrária como o principal modo de enfrentamento da grave crise social causada pelo latifúndio na formação territorial do Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



(1)     As Constituições do Brasil – A Constituição de 1891, Fundação Projeto Rondon, 1986, p. 1.

(2)     Francisco de Assis ALVES, Constituições do Brasil, vol. I, Programa Nacional de Desburocratização – Instituto dos Advogados de São Paulo. Brasília – DF, 1985, p. 20.

[2](3) “Apud” As  Constituições no Brasil – A Constituição ..., p. 3

 

(4) “Idem”, p.9.

(5) “Apud” As Constituições no Brasil – A Constituição de ..., p.1[3]

 

[4] (4) J. L. OSÓRIO, Direito Rural, e Francisco de Malta CARDOSO,  Tratado de Terras do Brasil..

[5]

[6]

[7](7) Derivação de kulak que, em russo, designa o latifundiário, proprietário de grandes fazendas em que se empregava trabalho assalariado, surgido com a Reforma camponesa de 1861.

(8)Camponês pobre russo, antes da Revolução Soviética de 1917, e que até a Reforma de 1861 eram servos.

(9) ApudAs Constituições do Brasil – A Constituição de 1937, 1986, p. ...

[9] (1) Aliomar BALEEIRO, A Constituição de 1946 – Programa Nacional de Desburocratização, Fundação Projeto Rondon, p. 2.

[10] (2) PCB: Partido Comunista Brasileiro; PTB: Partido Trabalhista Brasileiro; PSD: Partido Social Democrático.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

A QUESTÃO AGRÁRIA - Capítulo IV Império do Brasil, propriedade privada e terras devolutas. Pedro Cordeiro da Silva.

 

CAPÍTULO IV

Império do Brasil, propriedade privada e terras devolutas.

 

1)    A Constituição imperial

A independência do Brasil, a separá-lo do reino unido com Portugal e Algarves, não se deu de improviso no dia Sete de Setembro de 1822.

Em verdade, ela foi adrede concebida e preparada desde a partida do rei Dom João VI de volta para Lisboa, na data de 26 de abril de 1821, e a assunção do príncipe Dom Pedro I à regência no Brasil do dito reino unido. Antes do Grito da Independência às margens do riacho Ipiranga, já se convocara a Assembleia Constituinte do Brasil.

 Pelas palavras do Barão Homem de MELO:

”...decreto de 3 de junho de 1822, referendado por José Bonifácio de Andrada e Silva, convocou uma Assembleia Geral Constituinte e legislativa”. José Bonifácio era então o Secretário de Estado dos Negócios do Reino e Estrangeiros e, “no dia 3 de maio de 1823, já firmada a independência, foi a Assembleia solenemente aberta pelo Imperador”. 1

Por causa de aberto conflito político em torno do projeto constitucional com a Assembleia, “o Imperador em pessoa, no paço da cidade, dirigira a execução”, “no dia 12 de novembro de 1823, a uma hora da tarde,“ a dissolução da Constituinte à força armada. 2

Dissolvida a Assembleia, o seu projeto constitucional serviu de base para a Constituição imperial outorgada em 25 de março de 1824, emendada em 12 de agosto de 1834 pelo Ato Adicional denominado Lei N.º 16.

O texto original da Constituição de 1823 foi silente sobre os bens públicos em geral, por conseguinte sobre as terras públicas em específico. No entanto, garantia ao cidadão brasileiro o direito de inviolabilidade da propriedade privada em toda a sua plenitude com a única exceção de o bem público exigir o seu uso e emprego; por cuja ocorrência o cidadão deveria ser previamente indenizado do respectivo valor (artigo 179, XXII). Este dispositivo constitucional remetia à Lei marcar os casos em que se poderia dar procedimento e as regras para observar na indenização correspondente.

Ainda que não mencionado o termo, verifica-se ali as condições e elementos formadores do instituto da desapropriação constitucional no Brasil. Como o procedimento foi previsto de modo genérico quanto aos bens objetivados, é compreensível que as terras rurais se incluíam no seu objeto.

Lei de 29 de agosto de 1827 estabeleceu a indenização de benfeitorias e solo aos “proprietários, por cujos terrenos se-houverem de abrir as estradas, ou mais obras” (Art. 17), consoante nota de Teixeira de FREITAS. 3

O Ato Adicional de 18 de agosto de 1834, no entanto, veio dar ao procedimento a denominação pelo qual é intitulado até o presente ao incluir, na competência legislativa das Assembleias Legislativas Provinciais que criara, “os casos e a forma por que pode ter lugar a desapropriação por utilidade pública municipal ou provincial”. (Artigo 10, § 3.º).

Quanto aos bens públicos, a aludida emenda adicional veio suprir ao mínimo a omissão constitucional, ao comandar que “uma Lei Geral marcará o que são bens provinciais”, em complementação ao dispositivo que atribuiu às Assembleias Legislativas das Províncias “regular a administração dos bens provinciais”. (Artigo 11, § 4.º, e Consolidação das Leis Civis, art. 60).

A lei geral prevista pela Constituição imperial foi promulgada em 1850, vindo a dispor sobre as terras devolutas no Império, as de sesmarias, a colonização estrangeira e outras providências relativas a posse e propriedade rural. (L. n.º 601).

As terras de propriedade privada abrangiam as que se incorporaram o domínio particular a justo título, sesmaria ou outra concessão do “Governo Geral ou Provincial”, não incursas em comisso.

À época, para transmissão da propriedade particular imóvel, além do justo título aquisitivo, requeria-se a simples tradição da coisa; assegurado o direito de ação pessoal ao adquirente a quem faltasse a tradição, na prescrição do artigo 908 da Consolidação das Leis Civis.

Previamente à breve exposição sobre a distinção entre os modos aquisitivo e derivado, ou derivativo, do domínio 4, Teixeira de FREITAS anotou que a ocupação é modo de domínio originário para os particulares sobre as coisas móveis, assim “como foi sobre immoveis para o Estado o domínio originario do territorio do Imperio.” 5

Pode-se depreender dessa curta explanação de Teixeira de FREITAS que, à época, a ocupação pelos particulares como causa de domínio não seria admissível para bens imóveis. 

Conclui-se também que a possibilidade jurídica de desapropriação de terras rurais, seja pelo poder central seja pelas Províncias e municípios, era somente para destinação à utilidade pública; o que constituía impedimento essencial para uma – impensável naquela altura – desapropriação dos latifúndios constituídos pelas terras dadas de sesmaria, menos ainda a objetivar a redistribuição delas aos pequenos posseiros e aos trabalhadores do campo, composto massivamente por escravos.

2) A Lei de Terras e a Consolidação das Leis Civis.

Darcy RIBEIRO, ex-Reitor da universidade de Brasília, reconhecido antropólogo brasileiro, escritor e político, em entrevista pela televisão nacional, amplamente divulgada em meados da década de 1980, ao fazer cotejamento entre a Lei de Terras do Brasil de 1850 e a lei de terras norte-americana de 1862, concluiu por avaliar que a legislação norte-americana fora benéfica para os trabalhadores rurais, por haver distribuído gratuitamente pequenas áreas de terras aráveis aos pioneiros do Oeste, sob o compromisso de cultivo ao menos por cinco anos consecutivos  e estabelecimento de família pelos beneficiários; ao contrário da lei brasileira que estabeleceu a venda como único meio de alienação das terras devolutas e, ainda, condicionada à prova de condições materiais de exploração pelo candidato à aquisição, o que impedia aos trabalhadores rurais sem recursos monetários essa aquisição.

Leo HUBERMAN, acadêmico e escritor estadunidense, dissertou a respeito da lei de terras norte-americana de 1862, especialmente sobre a sua motivação e os seus efeitos sobre a economia:

“Assim como a Guerra Civil forçou a expansão do sistema de estradas de ferro, também forçou a expansão da agricultura. Milhares de homens estavam em luta – e tinham que ser alimentados. Era necessário dinheiro para custear a guerra – era preciso levantar esse dinheiro. As fazendas é que fizeram isso. ... O pão ganhou do algodão – é um modo simples de exprimir não somente a vitória do norte contra o sul, mas também a entrada em cena das grandes terras agrícolas do oeste.

O que havia começado nos anos de guerra continuou durante os anos de paz. A Lei de Cessão de Terras de 1862, que dava 160 acres de terra arável no oeste a quem quisesse cultivá-la foi um imã a atrair gente. Os imigrantes continuavam a ser despejados nos Estados Unidos. ... O número de fazendas quase triplicou, de 1860 a 1900; o mesmo se deu com a área cultivada. ...” 6

“... no período de 41 anos, mais de ¼ de um milhão de acres de terra arável foram acrescentados aos existentes – uma quantidade maior que a área produtiva da Itália, Alemanha e França juntas!”. 7

“... O ano de 1890 marcou o término da fronteira. O fim da fronteira marcou o fim da terra grátis.” 8

Expôs ainda Leo HUBERMAN:

“No período que se seguiu à Guerra Civil o modo de cultivar também mudou. Primeiro, o fazendeiro médio era praticamente auto-suficiente. Na sua própria fazenda, ele podia produzir tudo que quisesse. ...  Os produtos de sua fazenda satisfaziam as necessidades de sua família – e se sobrasse alguma coisa dava para pagar os impostos ou para comprar alguma coisa de fantasia, que não podia ser feita dentro da fazenda. Isso se chamava produção para o consumo.

Com o correr do tempo, tudo mudou. O fazendeiro já não fazia tudo sozinho, e sim se atinha ao cultivo de uma ou duas culturas. Não era mais auto-suficiente. Tornou-se um especialista. ... A especialização era perigosa porque o ligava à economia capitalista, com todos os seus altos e baixos. A produção para consumo era uma coisa, a produção para troca era outra coisa muito diferente.”

........................................................................................................

“Desde a Guerra Civil até o fim desse século a agricultura se expandiu, mas os lucros dos fazendeiros decididamente não aumentaram. O fazendeiro trabalhava duro, sem lucros, ou com pouquíssimo lucro. ...” 9

É perceptível que a agricultura nos Estados Unidos expandiu-se de modo acelerado enquanto o estado norte-americano possibilitou aos imigrantes o acesso fácil às terras virgens e, então, os colonos produziam diversificadamente, para o consumo próprio e para a venda direta a outros consumidores, com lucro ; mas, em seguida, o modo capitalista os forçou à um só tipo de produção, quando passaram a ser meros fornecedores para o agronegócio, sujeitando-os aos riscos das oscilações de preços das bolsas de mercadorias, a levá-los a dificuldades financeiras.

O tempo compreendido entre 17 de julho de 1822, quando o Imperador Pedro I emitiu resolução que suspendeu a concessão de sesmarias, e a vigência da Lei n.º 601 de 1854 ficou conhecido como período de posse, posto que a grande maioria dos possuidores rurais não detinha título legítimo de domínio; logo não eram proprietários. 9.a

Neste passo, a propriedade privada no Brasil teria sido consolidada a partir da promulgação da primeira lei de terras nacional, que viera para atender a necessidade de segurança das posses latifundiárias, em face da prevista carência de mão-de-obra provocada pelo fim do tráfico de escravos, imposto pela Inglaterra. Id 

Ante a óbvia natureza administrava da matéria, a Consolidação das Leis Civis do Brasil, aprovada em 1858, se limitou a classificar as terras devolutas entre as de domínio do Estado (Art.  52.º, § 2.º) e a repetir a definição delas estabelecida pela Lei n.º 601 de 1850, bem assim a respeitar as “leis especiais” de regulamentação da matéria, expressamente no que diz respeito à revalidação das concessões feitas e à legitimação de posse. (Art. 904).

Essas leis especiais de direito público eram a Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850 e o seu regulamento, baixado com o Decreto n.º 1.318 de 30 de janeiro de 1854.

A Lei n.º 601 de 1850 restringiu, logo no seu artigo inaugural, a aquisição de terras devolutas unicamente ao modo de compra:

“Art. 1.°Ficão prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.” (sic)

As únicas terras devolutas que poderiam ser concedidas gratuitamente eram “as terras situadas nos limites do Império com paizes estrangeiros em uma zona de dez léguas” (sic), consoante exceção estabelecida no mesmo artigo legal suso citado; havendo o regulamento de 1854 previsto a concessão delas a empresários para o fim de colonização, em áreas de “dez 10 léguas em Quadro, ou o seu equivalente por cada colônia de 1.600 almas, sendo as terras de cultura, e 400 sendo campos próprios para criação de animais”, inclusive com subsídio às empresas a título de ajuda pelas dificuldades delas no empreendimento. (Dec. cit., art. 85)

No geral, quanto à colonização, o Governo ficou autorizado a trazer, com encargos próprios, “colonos livres” para serem empregados em estabelecimentos agrícolas ou em trabalhos da administração pública, ou na formação de colônias. (Lei cit. art. 18)

Excluíam-se do domínio nacional as terras devolutas concedidas, pela Lei n.º 514 de 28 de outubro de 1818, às Províncias para fins de colonização, com área de seis léguas em quadro por diferentes lugares em cada Província, nas quais se vedou o emprego de braços escravos, como anotado por Teixeira de FREITAS. 11

Essas outras terras devolutas, integrativas dos bens provinciais e destinadas à colonização, tinham a sua administração regulada pelas Assembleias Legislativas das Províncias, conforme o artigo 60 da Consolidação das Leis Civis. 12

A concessão do domínio de terras devolutas para as Províncias, confirmada por Av. de 24 de março de 1851Idem, viria a ser a gênese da disposição constitucional republicana de 1891 que atribuiu aos Estados todas as terras devolutas, a exceção da porção indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. (Const. Fed. de 1891, art. 64).

Dispôs a Lei n.º 601 de 1850 o que são terras devolutas:

“Art. 3.° São terras devolutas :

§ 1.° As que não se acharem applicadas á algum uso publico, nacional, provincial ou municipal.

§ 2.° As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

 § 3.° As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.

§ 4.° As que não se acharem occupadas por posses que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.” (sic)

Comisso designa a perda das sesmarias cujos titulares não haviam cumprido as condições de medição, confirmação e cultura das terras recebidas a tal título. (Lei cit., art. 2.º, § 3.º, e Consolidação das Leis Civis, art. 53, § 2.º)

Por isso, os seus possuidores – caídos em comisso – perderiam “o direito a que tinham a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos ou por favor da presente lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.” (L. cit., art. 8.º)

Messias JUNQUEIRA, buscou sintetizar a definição de terras devolutas por exclusão das demais, ínsita no artigo legal retro transcrito:

“Terras devolutas são as que não estão incorporadas ao patrimônio público, como próprios, ou aplicadas ao uso público, nem constituem objeto de domínio ou de posse particular, manifestada esta em cultura efetiva e moradia habitual” 13.

Em desarmonia com o comando norteador da política de regulação geral de terras ínsita no Parágrafo Segundo do artigo 3.º da Lei n.º 601 de 1854 - são devolutas as terras de sesmarias incursas em comisso por não cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura - o Decreto n.º 1.318, de 1854, preceituou:

“Art. 22. Todo o possuidor de terras que tiver titulo legitimo da acquisição do seu domínio, quer as terras que fizerem parte delle tenhão sido originariamente adquiridas por posses dos seus antecessores, quer por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas, se acha garantido em seu domínio, qualquer que fôr a sua extensão, por virtude do disposto no § 2.° do Art. 3.º da Lei n. 601 de 18 de Setembro de 1850, que exclue do domínio publico, e considera como não devolutas todas as terras que se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo.”

Prima facie, verifica-se que o disposto pelo artigo 22 do Decreto n.º 1.318 de 1854 confrontou o conceito histórico do que são terras devolutas originalmente, que se pode exprimir resumidamente como terras devolvidas ao estado pelo particular que não as tenha cultivado, e contrariou o interesse público ao desconsiderar a condição resolutiva das doações de sesmarias que não viessem a ser efetivamente cultivadas.  

Teixeira de FREITAS não se pronunciou diretamente a respeito desse dispositivo regulamentar contraditório à norma regulamentada, mas mostrou-se implicitamente assente com ele ao explicitar, com arrimo no artigo seguinte imediato àquele (art. 23), que os possuidores a título legítimo não precisariam de novos títulos (de revalidação) para gozar, hipotecar ou alienar os terrenos do seu domínio, vindo mesmo a tachar de nulidade, com relação a essas terras, a disposição do artigo 11 da Lei de Terras, que tornou obrigação dos posseiros tirarem títulos de legitimação, sem os quais não poderiam hipotecar nem alienar a sua posse.

Faz- se necessário, neste ponto, considerar que, desde quando a Coroa portuguesa se apossou das terras originariamente pertencentes aos nativos de Pindorama, é sabido que todo domínio privado no Brasil tem origem em ato de transferência do domínio público. Também é sabido que a prescrição aquisitiva de terras devolutas sempre foi muito questionada na terra brasilis até a dirimência da questão pelo Código Civil de 1916.

Sob o aspecto de aquisição da propriedade de terras fundada na simples posse restou tão somente a legitimação de terras que, como era próprio, se consumava por ato do Poder Público.

Há ainda a se considerar que, por força da hierarquia das leis, uma norma regulamentar cede vigência a norma da lei regulamentada, quando com ela contraditória.

Também é discutível se o título legítimo de que cuida o Art.3.º, § 2.º, da Lei n.º 601 de 1850 seria o mesmo título justo de que trata o Art. 907 da Consolidação das Leis Civis, dado que esse título é modo derivativo de aquisição de domínio, comandado por disposição essencialmente de natureza jurídica privada, não de direito público, nem é demonstrativo da legítima apartação do bem do domínio público originário; e ainda que a decisão judiciária de que trata a disposição legal mencionada  seria a de resolução de conflito sobre direitos privados. 14

É significativo verificar, ao cabo, que do rol dos justos títulos constante das Ordenações, consoante alinhamento feito por Teixeira de FREITAS, não se encontra sesmaria nem outro tipo característico de emanação do Poder Público, mas apenas atos próprios de direito privado, tais como:

”L. 4,º T. 58 § 3.º - vendo primeiro as cartas das compras, escaimbos, ou doações; - § 4.º - carta de aforamento feita pelo senhorio da cousa, - L. 1º T. 78 ª 8.º - escripturas das vendas, escaimbos, aforamentos, e de outros quaisquer contractos.” Id.

Com o suposto escopo de incentivo à produção e ao povoamento do interior, a Lei de Terras comandou em seu artigo 4.º que:

“Serão revalidadas as sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com que forão concedidas”. (sic)

A par com a revalidação, que interessava sobremaneira aos latifundiários de então, sesmeiros desidiosos, a Lei de Terras instituiu a legitimação de posse, por seu artigo 5.º, pretensamente mais favorável aos pequenos agricultores despossuídos de quaisquer títulos:

Art. 5.° Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por occupação primaria ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, ...(sic)

A posse legitimável deveria ter a área máxima igual a das últimas sesmarias concedidas na mesma Comarca ou nas vizinhas, vedada a legitimação da posse que se situasse dentro de sesmaria, ou outra concessão do Governo, não incursa em comisso ou revalidada, a cujo posseiro somente cabia direito a indenização pelas benfeitorias. (Art. cit., §§ 1.º e 2.º)

A Lei de Terras cominava despejo, com perda das benfeitorias, ao posseiro que derrubasse mato e pusesse fogo nas terras devolutas, ou alheias (particulares), e lhe apenava ainda prisão, multa e indenização dos danos que causasse, mas excluía de tais sanções os herdeiros confinantes. (2.º)

Pode-se considerar que a teleologia dessa norma de aparente predição ecológica era criar obstáculo ao procedimento massivo da legitimação de posse do pequeno agricultor que a própria lei de terras instituíra, vista a excludente do tipo infracional que criou conferida a herdeiro (heréo) confinante, cujo único fundamento perceptível seria por esse deter um título privado reconhecido.

Tanto fazia que a derrubada de mato e o fogo posto tivessem se dado em proporções mínimas, para se levantar uma moradia modesta e se cultivar uma horta de subsistência - inclusive em atendimento à exigência legal para a obtenção do título de legitimação - ou se dado em maior amplitude, para introduzir criação de grande porte ou plantação de monocultura.

Pela dicção do mencionado artigo 2.º da Lei de Terras de 1850, os latifundiários da época - sesmeiros ou concessionários - não eram mesmo abrangidos por aquela norma punitiva, dado que não eram eles posseiros, mas proprietários esteados em justos títulos, nos termos da lei civil, ou legalmente revalidáveis.

A exceção contida no Parágrafo Segundo, do citado artigo quinto da Lei n.º 601 de 1850, incluiu entre os beneficiados com a legitimação os posseiros cujas respectivas posses, dentro de sesmarias, ou outras concessões governamentais, tenham sido declaradas boas por sentença transita em julgado em litígio contra  sesmeiro ou concessionário, e as que tenham sido estabelecidas antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; ou ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.

Na ocorrência da legitimação de posse tratada pelo mencionado Parágrafo Segundo, ressalvou-se ao respectivo sesmeiro, ou concessionário, o direito de ficar com o terreno que lhe sobejar, ou entrar em rateio igual com os posseiros legitimáveis, como se posseiro também fosse. (art. cit., § 3.º)

O tratamento dado pela lei enfocada aos campos de uso comum foi de conservá-los como tal, em sua inteireza, enquanto lei não dispuser em contrário. (art. cit,§ 4º).

O artigo 14 da Lei de Terras autorizou que o Governo vendesse as terras devolutas apuradas, expurgadas das revalidadas e legitimadas, por preço superior ao mínimo de meio real, um real, real e meio e dois réis por braça quadrada (4,84 m²), conforme a qualidade e situação dos lotes, com pagamento à vista, previamente medidas, divididas, demarcadas e descritas.

Ante a dificuldade de grande parte dos pequenos agricultores posseiros em arcar com os ônus do preço estabelecido na lei e das custas da medição regulamentada (Dec. cit., art. 55), o Av. n. 126 de 10 de Abril de 1858 determinou, quando a posse não excedesse a 250,000 braças quadradas, equivalente a 121,0 hectares, e não tivesse meios para essas despesas, que a autoridade encarregada da medição para as legitimações de posse (Juiz Comissário), deveria informar ao Presidente da Província para decisão dele a respeito, cujo diploma veio de ser aditado por Av. de 31 de maio de 1875, que prescreveu a possibilidade de as terras objeto de posses legitimáveis ocupadas por pobres, se não excedessem “às do quadrado 1100 metros por lado”, os mesmos 121,0 hectares, serem concedidas pelo preço mínimo de venda estabelecido, correndo pelo Estado as despesas de medição. 

No entanto, a Lei de Terras deitou regras fomentadoras da colonização com mão-de-obra estrangeira, ao ponto de ordenar que o produto da venda de terras de que tratava seria “exclusivamente aplicado na medição de terras devolutas e na importação de colonos livres” (Lei cit., art. 19); propósito observado na legislação sucedânea, inclusive na República, quando se instituiu o INIC - Instituto Nacional de Imigração e Colonização.

Com o tráfico de escravos interditado pela Inglaterra, a potência naval hegemônica na época, passou-se a se estimar o fim do trabalho escravo no Brasil, mas nem a Lei de Terras nem a legislação que se lhe seguiu procedeu a alguma previsão normativa para o problema da desocupação dessa mão-de-obra escrava que viria se tornar livre:

 

“Não foi por acaso que a Lei de Terras nasceu em 1850. Duas semanas antes de ela entrar em vigor, outra norma histórica havia sido assinada por Dom Pedro II: a Lei Eusébio de Queirós. Foi a primeira das leis abolicionistas. Por meio dela, o Brasil, pressionado pela Grã-Bretanha, proibiu a entrada de novos escravos africanos no território nacional. Embarcações britânicas passaram a interceptar navios negreiros no Oceano Atlântico e confiscar a carga humana.

Os latifundiários entenderam que a escravidão, mais cedo ou mais tarde, chegaria ao fim e que os seus cafezais corriam o risco de ficar sem mão de obra. A Lei de terras eliminaria esse risco. Uma vez tornadas ilegais a invasão e a ocupação da zona rural, tanto os ex-escravos quanto os imigrantes pobres europeus ficariam impedidos de ter suas próprias terras, ainda que pequenas, e naturalmente se transformariam em trabalhadores abundantes e baratos para os latifúndios.

Da mesma forma, os pequenos posseiros que fossem expulsos de seus antigos lotes, excluídos da anistia por não poderem pagar as taxas previstas na Lei de Terras, também reforçariam o contingente assalariado dos cafezais.” 15

 

Com a abolição da escravatura a caminho, a medida do poder do latifundiário foi passando da quantidade de escravos que possuía para a extensão de terras de que era senhor. Era a transformação da terra em mercadoria, no contexto da expansão mundial do capitalismo. (Idem)

O regime estabelecido pela Lei de Terras de 1850 acendrou o campo do Brasil para o fortalecimento do latifúndio, principalmente o dedicado às plantations, voltadas quase com exclusividade para a exportação de açúcar e café.

“Estudiosos da questão dizem que o histórico predomínio do latifúndio levou ao surgimento dos trabalhadores rurais sem terra e tornou rotineira a violência no campo. Também condenou a agricultura brasileira a um longo período de atraso técnico... Caso os lotes fossem pequenos, eles teriam sido forçados a investir em novas tecnologias para aproveitá-los ao máximo.” (Ibidem)

_____



(1) Barão Homem de MELO, As Constituições no Brasil – Constituição de 1824, Fundação Projeto Rondon, 1986, p.3.

(2) Idem, p. 9.

(3) Teixeira De FREITAS, Consolidação das Leis Civis, ... p. 529.

 (4)  A. Teixeira de FREITAS, op. cit., ps. 534.

(5)  A. Teixeira de FREITAS, op. cit., ps. 526. 

 (6) Leo HUBERMAN, História da Riqueza dos EUA (Nós, o Povo), 2.ª ed. – 1978, Edit. Brasiliense, S. Paulo, p. 176-

(2)     [7] Idem, p. 177.

(3)      [8] Ibidem, p. 178.

(4)     [9] Ibidem, ps. 179/180.

(7) [9.a] João da C. GONÇALVES Neto et alii, A Formação da Propriedade Fundiária no Brasil: A Lei de Terras de 1850, Ver. Themis,Fortaleza,v.17,n.º2,jul./dez.2019,os.173-195. <HTTPS://revistathemis.tjce.jus.br/THEMIS/article/download/683/pdf/2627>

[10] Equivalente a 23.309,89 hectares.

(11) A. Teixeira de FREITAS, Terras e Colonisação, 1882, B. L. Garnier, R. de Janeiro, p. 2.

(12) Lei de 12.8.1834, art. 11, § 4.º, Av. de 6.4.1835, Circ. de 13.10.1838, L. n.º 601 de 18.9.1850, art. Art. 3º, § 1º, apud Teixeira de FREITAS, Cons. das Leis Civis, p.67.

(13) Messias JUNQUEIRA, As Terras Devolutas na Reforma Agrária, Edit. Gráfica da Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1964, p.68.

(14) A. Texeira de FREITAS, op. cit.,p. 534.

(15) Ricardo WESTIN, Questão Agrária, Agência Senado/Arquivo do Senado – Arquivo S, Edição 71, 14.09.2020 (Portal Senado Notícias).