CAPÍTULO V
As terras nas Constituições
republicanas do Brasil.
Descreveu Octaciano NOGUEIRA, l
“No dia 3 de dezembro de 1889, dezoito dias depois da proclamação da República, portanto,
o governo provisório do Marechal Deodoro baixou o Decreto n.º 29, criando uma
comissão de cinco membros, para elaborar o projeto da Constituição
republicana. No dia 21 de dezembro, dezoito dias depois, portanto, convocou a Assembleia
Constituinte.” 1[1]
O projeto elaborado pelos cinco
membros designados pelo Governo Provisório foi revisado por Rui Barbosa antes
de ser objeto de decreto governamental, publicado ad referendum da
Assembleia Constituinte, cujas sessões se iniciaram aos 15 de novembro de 1890,
precisamente na data do primeiro aniversário da República.
“Em 24 de fevereiro de 1891, isto é, três meses e dias depois
de instalada, a Constituinte republicana publicava a Constituição aprovada.”(Idem)
Francisco de Assis ALVES assinalou que
a Carta de 1891 fez brotar a república liberal, implantou no Brasil o regime
representativo, calcado no modeloamericano.2
O primeiro diploma constitucional republicano
assegurou o domínio particular aos brasileiros e estrangeiros residentes no
País, em toda a plenitude, salvo caso de desapropriação, nos termos do seu artigo
72, § 17.
O instituto da desapropriação na
Constituição Imperial, inserto pelo Ato Adicional de 1834, não teve os seus
elementos basilares modificados pela primeira Constituição Republicana, senão
que apenas acrescentada, à motivação de utilidade pública, a motivação de
necessidade pública (Art. 72, § 17).
A desapropriação prevista, por
necessidade ou utilidade pública, não abrangia reforma fundiária, nem poderia
mesmo abranger porque se tratava de uma Constituição produzida sob os influxos
do liberalismo econômico mais tradicional.
A indenização prévia permaneceu, tendo permanecido “conditio sinequa non”, pela
alta despesa pública que demandaria, objetava qualquer desvelo de instituição de
desapropriação no interesse social, mormente para fins de reforma agrária.
A Constituição republicana de 1891
não trouxe nenhuma disposição que classificasse os bens públicos, mas dispôs
sobre a atribuição do domínio das terras devolutas aos Estados em cujos
territórios elas se situassem, com a ressalva de caber à União Federal a porção do território indispensável para a
defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de
ferro federais. (Art.64).
Ante a omissão constitucional sobre a
largura do território indispensável para a defesa das fronteiras e demais
finalidades que elencou, é de concluir-se que permanecia esse território – a faixa de fronteiras – com a dimensão para o interior fixada pela
Lei de Terras de 1850, qual seja dez léguas (sessenta quilômetros).
A reserva de domínio da União, sobre
as terras devolutas que servissem a qualquer das finalidades apontadas no citado
artigo constitucional, é notoriamente fundada em razões de defesa nacional e, no
caso específico das estradas de ferro, parece também demonstração do interesse
na integração das populações fronteiriças ao restante território nacional.
Os terrenos indispensáveis a
fortificações, construções militares e estradas de ferro federais, assim que
efetivamente destinadas a esses fins deixavam de ser terras devolutas, para se tornarem
espécie de bens públicos de uso especial.
No Brasil, vitoriosa a revolução
liderada por Getúlio Vargas, com a publicação do Decreto n.º 19.398, de 11 de
novembro de 1930, instituidor do Governo Provisório da República com plenos
poderes discricionários, determinou-se a dissolução do Congresso Nacional, das
Assembléias Legislativas estaduais e das Câmaras Municipais. Contudo, foram
preservadas a continuidade do exercício do Poder Judiciário e a vigência em
tese das Constituições Federal e estaduais, bem ainda das legislações e
regulamentações legais dos três níveis da Federação, ainda que todas sujeitas
às modificações e restrições por aquele decreto ou por outros ulteriores do
Governo Provisório, ou de seus delegados nas esferas de atribuições de cada um
(Artigos 1.º a 4.º).
Prenunciou-se um avanço sobre a
questão agrária nacional com o Decreto n.º 19.924, de 27 de abril de 1931,
editado na linha do espírito reformista socialdemocrata inspirador do Governo
revolucionário, cujo artigo segundo firmou que, na concessão das terras
devolutas, se procurará sempre facilitar e estimular a formação de pequenas
propriedades e a sua ocupação efetiva, e cultura, pelos
concessionários.
Prevista no artigo 12 do Decreto n.º
19.398 de 1930, a nova Carta Magna foi promulgada por Assembléia Nacional Constituinte
que a fez publicar na data de 16 de julho de 1934.
Celso Ribeiro BASTOS disse a respeito da
natureza da Constituição de 1934 que “Esse Estatuto Político, a par de assumir
teses e soluções da Constituição de 1891, rompeu com a tradição até então existente,
porque, sepultando a velha democracia liberal, instituiu a democracia social,
cujo paradigma era a Constituição de Weimar”. 3[2]
No entendimento de BASTOS:
“A matiz dominante dessa Constituição
é o caráter democrático com um certo colorido social. Procurou-se conciliar a
democracia liberal com o socialismo no domínio econômico-social;” bem ainda que
“Finalmente, há o lado social da Constituição que resultou da necessidade de
atender à massa urbana proletária existente, sobretudo, nas ferrovias e nos
portos.” 4 -5[3]
A Constituição de 1934, conquanto de
efêmera existência, substituída que foi pela autoritária Carta de 1937, inovou
no Brasil ao introduzir princípios e normas de Direito Social, não realizados por
legislação regulamentar da matéria, ao menos referente ao setor agrário. Assim
foi que o reconhecimento dos sindicatos e associações profissionais não se
aplicou aos trabalhadores rurais (Artigo 120).
Outro ditame dessa Constituição que
não se cumpriu com inteireza no que respeita ao trabalhador rural foi o inserto
no Artigo 121 que comandou: “A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá
as condições de trabalho” (sic); com a determinação programática de que essas
condições no trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, a se
procurar fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural e assegurar ao
trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras
públicas(art. cit., § 4.º).
Quanto ao aspecto de reforma
fundiária com vistas à destinação da propriedade agrária à sua intrínseca
função social, a Constituição de 1934 avançou com subordinar a garantia do
direito de propriedade privada à condição do seu exercício em conformidade ao
interesse social ou coletivo, no entanto sem prever sanção para o descumprimento
dessa condicionante, a remeter o assunto para a forma que a lei determinar
(Artigo 113, item 17).
O instituto da desapropriação permaneceu somente por motivos de
necessidade ou de utilidade pública e mediante prévia e justa indenização (it. cit.);
o que impossibilitava de fato que fosse ele usado como instrumento de reforma
agrária, seja por que essas motivações juridicamente não justificariam a
desapropriação por interesse social – de que é que se trata, na verdade – seja
porque o tesouro público não teria os recursos suficientes para realizar tão
imensa tarefa expropriatória com os pagamento das indenizações à vista e
previamente ao desapossamento privado.
Notável foi a criação da usucapião pro
labore, pela qual todo brasileiro, não proprietário rural ou urbano, que
possuísse por dez anos consecutivos, sem oposição nem reconhecimento de domínio
alheio, um trecho de terras com até dez hectares, tornando-o produtivo com o
seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio desse solo mediante
sentença declaratória transcrita em registro de imóveis (art. 125).
A Constituição de 1934, ao dispor sobre
os bens públicos, aí incluídas as terras, estipulou que tanto os de domínio da
União Federal quanto os de domínio dos Estados são os que a cada um deles já
pertenciam respectivamente, nos termos da legislação então em vigor.
Na classificação estabelecida pelo Código
Civil então vigente, Lei n.º 3.071 de 1.º de janeiro de 1916, os bens públicos
de uso especial compreendiam as terras públicas destinadas à colonização, que poderiam ser federais
ou estaduais, e os bens dominicais compreendiam aqueles integrados ao
patrimônio público sem uso público e desafetados de qualquer destinação
especial, e as terras devolutas
que, ainda por efeito do disposto no artigo 64 da Constituição de 1891,
pertenciam aos Estados onde se encontrassem, no entanto excluídas as situadas
na faixa de fronteira nacional, pois essas pertenciam ao domínio da União Federal.
A Constituição Federal de 1934, tendo
em vista a defesa nacional entre outras causas, atribuiu ao Poder Executivo
federal a regulamentação da utilização das terras públicas pela União e
pelos Estados, não a concessão ou
alienação delas.
A concessão de terras,
qualquer que fosse, dentro da faixa de fronteira nacional, delimitada em cem
quilômetros pela Constituição de 1934, ficou condicionada à audiência do
Conselho de Segurança Nacional, sem a qual não seria válida.
A alienação de terras públicas na
faixa de fronteira, ainda por disposição da Constituição de 1934, somente se
poderia efetuar com a aprovação do Poder Legislativo (artigo 166, §
3.º).
A se considerar essas disposições
constitucionais, aparentemente conflitantes, incluídas no Título da
Segurança Nacional (VI), é de concluir-se que o diploma maior de 1934
considerou a concessão de terras públicas na faixa de fronteira nacional
como uma cessão de direito real de usufruto, para a qual bastaria o
assentimento do CSN, enquanto a alienação delas somente seria possível
mediante autorização de lei, restrita ao domínio útil do bem – enfiteuse,
ou aforamento – como os terrenos de marinha.
O entendimento de que a concessão de terras na faixa de
fronteira seria espécie de cessão de direito real de usufruto se extrai também
ao verificar-se que outra disposição da mesma carta constitucional exigia para
a concessão de terras com área superior a dez mil hectares, situadas em qualquer
parte do território nacional e de qualquer titularidade pública,
autorização do Senado Federal, caso a caso (Artigo 130).
Nesse outro contexto, abrangente de
todo o território nacional, cuidava-se mais de proteger o patrimônio público da
sua dilapidação por meio de más administrações governamentais.
O certo é que, no conjunto dessas
disposições constitucionais acerca das terras públicas não se encontra nenhuma norma
programática de assentamentos de pequenos rurícolas e de trabalhadores rurais, conquanto
o artigo 121 da própria Constituição haja ditado princípio de preferência ao trabalhador
nacional na colonização e aproveitamento das terras públicas.
A Constituição socialdemocrata de 1934, ao
não dispor normas efetivas para o disciplinamento da reforma agrária no Brasil,
omitiu-se quanto à oportunidade de dar viabilidade material a dispositivos com
esse caráter implícito editados ainda no antigo regime da Constituição liberal
de 1891, pelo Presidente Nilo Peçanha, no bojo do Decreto n.º 8.072, de 20 de
junho de 1910, pelo qual foi criado o antigo Serviço de Proteção aos Índios –
SPI.
Ao dispor sobre as terras necessárias
para a promoção da instalação dos Centros Agrícolas para localização de
trabalhadores nacionais que previra (arts. 22 e 23), o referido decreto
governamental estabeleceu que seriam preferenciais as doadas pelos Estados e
municípios (art. 26, par. único), ao passo que previa a aquisição de terras
particulares por composição amigável, (art. 27), e “só em caso extremo” (sic) empregar-se-ia o recurso da desapropriação.
Houvesse a Constituição de 1934 estatuído normas
explícitas que abrigassem e propiciassem a materialização dos objetivos
dispostos pelo Decreto n.º 8.072 de 1910 ter-se-ia aí a primeira lei de reforma
agrária no Brasil.
O Decreto n.º 8.072 de 1910 não
dispôs uma nomenclatura própria à reforma agrária nem um plano tecnicamente
organizado nesse sentido, nem ainda a especificação das terras particulares a
serem abrangidas e dos recursos financeiros necessários para a implementação da
política de terras engendrada para os assentamentos dos camponeses, mas dispôs
especificadamente sobre os requisitos e as ações realizadoras de enfrentamento
da questão agrária então presente, bem assim sobre os procedimentos
administrativos necessários para tal, a se ver:
a) a indicação de terras particulares
para o assentamento dos trabalhadores nacionais, inclusive por desapropriação, embora
obstaculizada a execução dessa ação pela não existência de norma constitucional
prevendo-a por motivo de interesse social e por ser demais dispendiosa ao
erário, em vista da exigência de prévia indenização (art. 27);
b) a fixação dos lotes dos assentamentos
no mínimo de 25 hectares e no máximo de 50 hectares, como nítida medida contra
a constituição de novos latifúndios e também de novos minifúndios (art. 34);
c) a emissão de títulos de propriedade
definitiva ou provisória aos trabalhadores assentados, com cláusulas
resolutórias relativas à indisponibilidade dos lotes a pessoas não habilitadas legalmente
à aquisição dos mesmos, à proibição do absenteísmo na exploração rural e à má
conduta social (arts. 35, 46 e 47);
d) a possibilidade de aquisição dos
lotes pelos trabalhadores assentados para pagamento em até seis anos, com carência
de 24 meses (arts. 35, caput e 37);
e) o benefício de redução em 30% do
preço dos lotes aos trabalhadores assentados que, dentro de quatro anos,
houvessem cultivado com sucesso a área do seu lote (art.35,§ 2.º);
f) a obrigação dos trabalhadores
assentados de cultivarem pessoalmente os seus respectivos lotes, inclusive neles
se estabelecerem com a sua família, em as tendo (art. 39, § 1.º);
g) a obrigação pelos trabalhadores
assentados em não terem criação extensiva de animais (art. 39, § 2.º);
h) a obrigação aos trabalhadores
assentados de não disporem dos seus lotes e das benfeitorias neles constituídas
de modo que lhes impeça de os cultivarem livremente, até que obtenham os
respectivos títulos de propriedade (art. 39, § 3.º);
i) a assistência e instalações de educação
básica e de aprendizado agrícola, com oficinas, campos de experimentação e de
demonstração, inclusive de beneficiamento dos produtos da lavoura dos trabalhadores
assentados (art. 31);
j) a promoção de estímulos à produção de
culturas pelos trabalhadores assentados (art. 43);
k) a promoção de ações de preservação
florestal nos Centros Agrícolas (arts. 29 e 35, § 2.º).
Também ressaltam do Decreto n.º 8.702 de 1910os dispositivos
que buscam a compatibilização das ações de instalação e direção dos Centros
Agrícolas com as de proteção aos indígenas e contra a invasão dos territórios
deles. (Capítulos I a IV do Título I – DA PROTECÇÃO AOS ÍNDIOS, e art. 51); que
direciona o estabelecimento dos Centros Agrícolas “em boas terras de cultura,
apropriadas à lavoura mecânica, dotadas de perfeitas condições de salubridade,
de mananciais ou cursos de água potável, servidas de meios fáceis de
comunicação e próximas dos mercados consumidores” (art. 23); que estabelece a
criação imediata de até dois Centros Agrícolas, de preferência em “zonas
cortadas por estadas de ferro da União”, compreensíveis como projetos piloto (art.
24), com a previsão da sua multiplicação (art. 25).
A atividade de colonização rural foi
atribuída concorrentemente à União e aos Estados pelo artigo 10, IV, da
Constituição, para complementarmente dispor que “A União promoverá, em
cooperação com os Estados, a organização de colônias agrícolas, para onde serão
encaminhados os habitantes de zonas empobrecidas, que o desejarem, e os sem
trabalho.’ (Artigo 121, § 5.º)
Esse último citado dispositivo constitucional
foi na verdade um comando destinado a servir de instrumento jurídico para a
transferência de populações do seu “habitat” natural, os sertões do semiárido,
para o eldorado imaginado, as bordas da floresta
Amazônica.
Essa ação estatal de transferência de
populações veio de fato a se dar no início dos anos de 1970, mediante a
implantação de projetos de colonização e agrovilas, com famílias de rurícolas
sertanejos nordestinos, nas margens da rodovia Transamazônica, via transversal do
extremo Nordeste oriental até os confins da Amazônia ocidental.
Melhor se teria laborado na
Constituição se se houvesse objetivado e programado, além de generalizadas
previsões orçamentárias (art. 177), as obras e ações possíveis de amainar os
efeitos das secas prolongadas no semi-árido de modo que se dispusessem aos seus
habitantes meios e instrumentos para uma vida minimamente digna no seu espaço
de vivência original; tal como a transposição das águas do Rio São Francisco,
projetada desde o tempo do Império, mas somente iniciada bem recentemente, ora
em operação parcial e em vias de conclusão definitiva.
A Constituição de 1934 permaneceu com
a competência dos Estados para a tributação da terra, a decretação, o
lançamento, a arrecadação e a apropriação da renda do imposto sobre a
propriedade territorial rural (art. 8.º, I, “a”), mas sem conferir qualquer
funcionalidade a esse tributo como instrumento de reforma agrária. No entanto,
atribuiu-se ineficazmente aos Municípios certo imposto cedular sobre a renda de
imóveis rurais (Art. 13, § 2.º, IV).
A Constituição de 1934, dispôs no
Artigo 5.º, XIX, “c”, que ficava reservado à União Federal legislar sobre
normas fundamentais de Direito Rural.
O Direito Rural aí considerado não é
sinônimo do Direito Agrário moderno, de natureza social, que enfoca
precipuamente a questão agrária, exsurgente das relações de propriedade, posse
e trabalho das terras não urbanas.
A denominação Direito Rural revela uma
abrangência do objeto da matéria tratada maior do que a clássica, qual seja a
do Direito da Agricultura, porque este é restrito às atividades produtivas
diretamente da agricultura e da pecuária.
Essa maior abrangência no alcance do
objeto do Direito Rural encontra correspondência, entre outros na doutrina de
Joaquim Luís OSÓRIO4[4]e de Francisco Malta CARDOSO5[5], em que se incluem as atividades
industriais, as comerciais e as de transportes conexas ou acessórias à
atividade agrária, a exemplo do beneficiamento de produtos – agroindústria - e
o comércio da produção, inclusive a exportação, como as commodities agrícolas.
6[6]
Nesse sentido amplo do Direito Rural,
o Governo Provisório revolucionário, antes mesmo da Constituição de 1934, criou
o Instituto do Açúcar e do Álcool pelo Decreto n.º 22.789, de 1.º de junho de
1933, e, ao tempo do governo democrático de Getúlio Vargas, em 22 de dezembro
de 1952, pela Lei n.º 1.779, foi criado o Instituto Brasileiro do Café.
Ambos os Institutos, entes da
administração indireta federal com natureza autárquica, não se destinaram a
promoção direta de programas de caráter social, conquanto fossem aparelhados
com atribuições legais para intervir no domínio econômico. Essas atribuições
intervencionistas tinham por fim principal resguardar os titulares das
“plantations” de cana-de-açúcar e de café, bem assim os exportadores das
respectivas “comodities” das oscilações de valor de mercado prejudiciais às
suas atividades, mediante um sistema de garantia de preço mínimo aos seus produtos.
O estranhável
na Constituição de matiz socialdemocrata de 1934 foi a sua omissão com relação
às normas positivas de Direito Agrário progressista editadas pelo Decreto n.º
8.072 de 1910, baixadas antes mesmo da reforma agrária reivindicada pelo movimento
camponês mexicano(1911) e da deskulakização7[7],confisco dos latifúndios na grande
Rússia para redistribuição aos mujiques8,
encetada com a vitória da revolução soviética de 1917.
A Constituição de 1934, que
instituíra normatização modernizante política, social e econômica do Estado
brasileiro, teve existência demasiada curta para a realização efetiva dos seus
princípios, instrumentos e objetivos, eis que substituída pela Constituição
outorgada a 10 de novembro de 1937 pelo então Presidente da República, Getúlio
Vargas.
Para o enfrentamento da questão
agrária no Brasil, no período de vigência da Constituição de 1934, faltou
essencialmente a normatização da desapropriação dos latifúndios de modo
suportável financeiramente para o estado brasileiro, inserida no próprio texto
constitucional, e das ações objetivas para a realização efetiva de uma reforma
agrária, disposta ao mínimo como a contida no Decreto n.º 8.072 de 1910.
3.
1937
- A Constituição protofascista.
A Constituição de 1891 teve a sua
forma e o seu conteúdo de puro liberalismo – laissez faire, laissez passer
– substituídos pelo regramento socialdemocrata da Constituição de 1934 e essa
teve a sua forma e o seu conteúdo substituídos pelos da Constituição outorgada
de 1937, de caráter marcadamente fascista, a seguir a tendência adotada pelos
regimes políticos estabelecidos na Itália, por Benito Mussolini; na Alemanha, por
Adolf Hitler; em Portugal, por António Salazar; e em Espanha, por Francisco Franco.
Disse Francisco Brochado da ROCHA, em
comentário à Constituição de 1937:
“Disciplinando a ordem econômica num
sentido nacional e num sentido social, o Estado Novo brasileiro, a salvo de
todos os exageros doutrinários, edifica, no sistema que adota, um exato
equilíbrio do indivíduo com a coletividade”. (9)[8]
A Constituição de 1937, na direção
dos direitos sociais, não foi além dos direitos trabalhistas alinhados no
artigo 137 e da usucapião pro labore (art. 148),inclusive deslembrada
que foi a função social da propriedade e, por conseguinte, a instrumentalidade
jurídica para a realização de propósitos de justiça social, tais como a
desapropriação por interesse social e o imposto progressivo sobre a terra.
Mantiveram-se as desapropriações
apenas por necessidade e utilidade pública, mediante prévias indenizações,
(art. 122, 14) e a competência dos Estados para a decretação de imposto sobre a
propriedade territorial rural (art, 23I, “a”).
A Constituição de 1937, ainda que
tenha disposto um elenco de direitos protetores ao trabalhador (art. 137), ajusta
a Justiça do Trabalho (art. 139) dentro do contexto que contempla a classe
trabalhadora como elemento de composição de uma sociedade econômica corporativa,
em que sobrelevam a ela o Estado e a propriedade privada dos meios de produção,
expressa, a exemplo, pelo seu artigo 138:
“Somente, porém, o sindicato regularmente
reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que
participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de
defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações
profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para
todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles
funções delegadas de poder público.”
Disposições que marcam o propósito de
se usar a massa trabalhadora organizada como elemento de composição corporativa
da economia, acima de considerações de justiça social, são as inclusas no
capítulo DO CONSELHO DE ECONOMIA NACIONAL (arts. 57 a 63).
Ao Conselho de Economia Nacional foram
conferidos mecanismos legais e administrativos para a organização e coordenação
da economia corporativa nacional, sem a devida atenção para a melhoria social
da classe trabalhadora, como se vê das suas atribuições dispostas no art. 61, máxime
as seguintes:
“a) promover a organização
corporativa da economia nacional; ........................................................................................................
e) organizar, ..., inquéritos sobre
as condições de trabalho, da agricultura, da indústria, do comércio, dos
transportes e do crédito, com o fim de incrementar, coordenar e aperfeiçoar a
produção nacional;
f) preparar as bases para a fundação
de institutos de pesquisa que, atendendo a diversidade das condições
econômicas, geográficas e sociais do país, tenham por objeto:
I – racionalizar a organização e
administração da agricultura e da indústria;
II – estudar os problemas do crédito,
da distribuição e da venda, e os relativos â organização do trabalho.
.......................................................................................................
h) propor ao Governo a criação de corporações
de categorias. (sic)
A composição do referido Conselho,
consoante o art. 57 constitucional, compreendia paritariamente representantes
dos empregadores e dos empregados em cada uma das cinco seções em que ele se
subdividia, a saber: de indústria e do artesanato; da agricultura; do comércio;
dos transportes; e do crédito.
Ao presidente da República competia
indicar até três componentes para cada uma dessas seções e um ministro de
Estado para presidir o Conselho.
Como uma espécie de concessão do poder autoritário, previa-se
a permissão nas reuniões das seções desse Conselho “de representantes de
sindicatos ou associações de categoria compreendida em algum dos ramos da
produção nacional, quando se trate de seu especial interesse”, sem direito a
voto (art. 59, § 2.º).
A Constituição de 1937 foi silente no
que respeita ao uso e à destinação das terras públicas, mesmo quanto às situadas
na faixa de fronteira.
Como as disposições contidas nos artigos
36 e 37 dessa Constituição se restringissem a declarar que são do domínio da
União e dos Estados os bens que, respectivamente, já lhes pertencem nos termos
da legislação vigorante, é de se concluir que as terras devolutas permaneceram
de propriedade dos Estados onde elas se localizavam, com exceção das
localizadas na faixa de fronteira nacional.
Ainda que não houvesse declarado
explicitamente o domínio da União Federal sobre os territórios indígenas, a
Constituição de 1937 reconhece, nos termos do seu art. 154, a posse dos
“silvícolas” sobre as terras em que se achem localizados em caráter permanente,
vedado a eles a alienação delas,a acompanhar os passos da Lei n.º8.072, de 20.06.1910.
A Constituição de 1937 reproduziu, contudo,
uma norma de cariz social constante da Constituição anterior, ao acolher a
usucapião pró-labore, nos seguintes termos:
“Todo brasileiro que, não sendo
proprietário rural ou urbano, ocupar por dez anos contínuos, sem oposição nem
reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares,
tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o
domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.” (art. 148)
A usucapião pró-labore acolhida pela
Constituição Federal de 1937 contemplava com exclusividade os brasileiros,
trabalhadores rurais despossuídos que labutavam em terras não públicas, pois
para as públicas o instituto aplicável era o da legitimação de posse.
Para a outorgada Constituição de 1937
não havia questão social agrária a resolver; havia promoção do corporativismo,
base econômica de um estado fascista.
4.
1946
– A Constituição da redemocratização.
A
Constituição Federal de 1946 foi a da “redemocratização” do Brasil que, com o
fim do autoritário Estado Novo liderado por Getúlio Vargas, necessitava se
inserir no novo tempo histórico inaugurado pela vitória dos países aliados,
principalmente da União Soviética e dos Estados Unidos sobre os países do eixo nazifascista,
encabeçados pela Alemanha, a Itália e o Japão.
No cenário
histórico imediatamente posterior à Segunda Grande Guerra, realçou-se a União
Soviética como a grande demolidora do estado alemão fascista, a maior máquina
de guerra até então, a consolidar-se internamente e a prestigiar fortemente em
dimensão mundial os princípios e a práxis do socialismo real, que viria a
influenciar na libertação nacional dos países da Ásia e da África, até então colonizados
pelas potências européias, e no revigoramento das normas de conduta nacionais
de fundo social, essencialmente contemplativas do proletariado.
A
Constituição brasileira de 1946 não divergiria dessa tendência mundial de construção
de normas sociais protetoras do proletariado, como se fez com o reconhecimento
da autonomia do Direito do Trabalho, com os próprios princípios, legislação,
organização judiciária e aparelhamento de intervenção administrativa na
sociedade. (Vide arts. 5.º, XV, “a”, 94, V, 122 e segs., 157, 158 e 159.
A proximidade
geopolítica com os Estados Unidos, país hegemônico no mundo ocidental a partir
de então, influiu mais fortemente no assentamento dos mais importantes
princípios da política em geral, e especialmente da política econômica,pela
Constituição de 1946, que esposou, com alguma moderação, os da iniciativa privada
e livre mercado adotados por aquele país norte-americano.
Hermes Lima,
deputado constituinte à época e que viria a ser ministro do Supremo Tribunal
Federal, afirmou que “a obra seria mais de restauração do regime destruído pelo
golpe de 1937”, ao que aduziu Aliomar BALEEIRO, que também viria a ser ministro
da Suprema Corte:
“E, realmente, essa tendência
restauradora das linhas de 1891 com as inovações aproveitáveis de 1934
(disposição de proteção aos trabalhadores, à ordem econômica, à educação, à
família, etc.) foi característica do texto que veio a ser promulgado com grande
entusiasmo no dia 18-9-1946...”(1)[9]
A parca
normatização de fundo socialdemocrata inserida no texto constitucional de 1946
foi obra coletiva de constituintes comunistas (PCB) e trabalhistas (PTB), os
quais contaram com a colaboração dos integrantes da esquerda democrática,
imbricada na liberal União Democrática Nacional (UDN), núcleo fundador do
Partido Socialista Brasileiro (PSB), e de antigos “getulistas” populares, tal
como Agamenon Magalhães, ex-ministro da Justiça e depois governador de
Pernambuco, prócer do conservador PSD.2[10]
A tentativa
de conciliação entre os princípios políticos e econômicos liberais com algo de
socialdemocracia resultou em uma Constituição que se pode caracterizar como
liberal social, expressada solenemente no primeiro artigo do título Da Ordem
Econômica e Social:
“Art. 145. A ordem econômica deve ser
organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de
iniciativa com a valorização do trabalho humano.”
Esse
enunciado exprime a intervenção estatal no domínio econômico, a afastar
decididamente o velho liberalismo laisser faire, laisser passer do setor
produtivo nacional, mas sem ousar além da proclamação de uma idéia de justiça
social sem normas de materialização eficazes, afora as do Direito do Trabalho que
se aplicavam aos trabalhadores de atividades urbanas e se estendiam até aos da
agroindústria, mas não abrangiam os das atividades essencialmente rurais.
A
intervenção estatal está explícita no artigo 146 da Constituição de 1946, que
autoriza:
“A União poderá, mediante lei
especial intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou
atividade.”
Na
realização dessa intervenção estatal, o governo democrático de Getúlio Vargas
promulgou em 03 de outubro de 1953 a Lei n.º 2.004, que instituiu o monopólio
estatal de toda a atividade petrolífera nacional, desde a pesquisa mineral e
lavra à refinação dos produtos e transporte,inclusive dos seus derivados e dos
gases raros, seja por navios ou condutos. (art. 1.º)
A Lei n.º
2.004 de 1953 atribuiu o exercício das atividades então monopolizadas ao
Conselho Nacional do Petróleo, como órgão orientador e fiscalizador, e à
Petróleo do Brasil S.A. - PETROBRÁS, empresa de economia mista, como empresa
executora.
Quanto à
questão agrária, a Constituição de 1946 ficou nos princípios norteadores para o
seu enfrentamento – justiça social, função social da propriedade - e no mero
propósito de desapropriação por interesse social; mas não proveu o estado com
os instrumentos necessários para o enfrentamento do problema, tais como a
desapropriação dos latifúndios para o fim de reforma agrária sem prévia
indenização em dinheiro; a progressividade da tributação sobre a terra, de
acordo com o seu mau uso e sua má produtividade; a regulação dos modos de
redistribuição fundiária, inclusivamente o assentamento comunitário ou
coletivo; e um ente específico para o planejamento e a execução das atividades
reformistas.
Os
princípios de justiça social e função social da propriedade foram expressos
pela Constituição de 1946 nos seguintes termos:
a) O uso da propriedade será
condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do
disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com
igual oportunidade para todos (art. 147);
b) É garantido o direito de propriedade,
salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. (art. 141,
§ 16)
Na
Constituição de 1946 optou-se pela legitimação de posse e a usucapião pro
labore, bem ainda pela colonização de terras públicas, em evidente desatenção
à reforma agrária, que implicaria em extinção do latifúndio:
“Art. 156. A lei facilitará a fixação
do homem do campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das
terras públicas...
§ 1.º Os estados assegurarão aos
posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência
para a aquisição de até vinte e cinco hectares.
........................................................................................................
§ 3.º Todo aquele que, não sendo
proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição
nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e
cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada,
adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença devidamente transcrita.”
A tributação
da terra, em que pese permanecer sem progressividade sobre os
latifúndios, passou a ser isenta para as propriedades com até vinte hectares,
quando os seus respectivos proprietários não possuíssem outros imóveis e os
cultivassem só, ou com a sua família (art. 19, § 1.º), a beneficiar os pequenos
proprietários rurais.
Pelo seu artigo 156,§ 2.º, a
Constituição Federal de 1946 reafirmou normas constantes da Carta anterior exigentes
de “... prévia autorização do
Senado Federal ... para qualquer alienação
ou concessão de terras públicas com
área superior a dez mil hectares”(sic), obviamente inclusas as
terras devolutas estaduais; a necessidade
indispensável de prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional para a
concessão de terras devolutas na Faixa de Fronteira, que permaneceram no
domínio da União Federal por indispensáveis à defesa do país (art. 34, II); e a submissão da utilização dos imóveis situados na Faixa de
Fronteira a regulação legislativa. (art. cit., § 1.º).
A
Constituição de 1946 não incluiu as terras indígenas entre os bens da
União Federal; mas também não se pode considerar que elas deixaram de os integrar,
vez que a relação disposta dos bens de domínio federal constitucional, ao comandar
que “Incluem-se entre os bens da União” (art. 34), demonstra não ter
sido exaustiva.
É evidente
que a relação de bens de domínio federal disposta pelo artigo 34 da
Constituição de 1946 não foi exaustiva e que, portanto, outros bens ali não
elencados podiam ser de domínio da União Federal, considerando-se que a
normatização relativa ao domínio e posse das terras indígenas nem sequer foi
aludida no texto constitucional e, por outra face, não houve óbice
constitucional a impedir a recepção da normatização vigente anteriormente sobre
a matéria na nova ordem jurídica nacional.
Assim, foi
recepcionada pela Constituição Federal de 1946 o dispositivo do artigo 10 da
Lei n.º 5.484 de 1928, que mandou fosse promovida ”a cessão gratuita para o
domínio da União das terras devolutas pertencentes aos Estados, que se acharem
ocupadas pelos índios, bem como a das terras das extintas aldeias, que foram
transferidas às antigas Províncias pela Lei de 2º de outubro de 1887”, cuja posse pelos indígenas deveria ser respeitada,
nos termos do artigo 216 da mesma Constituição.
A cumprir a
autorização constitucional para atribuir a um ente federal específico as
atividades de seleção, entrada, distribuição e fixação de imigrantes (art.
162), a Lei n.º 2.263, de 05.01.1954, criou a autarquia federal denominada Instituto Nacional de Imigração e
Colonização INIC, com atribuição também de proceder acesso dos nacionais à
pequena propriedade agrícola(Lei cit., art. 3.º, “c”).
Afora a transferência para
o patrimônio do INIC de todos os imóveis pertencentes à União Federal, que
estavam sob a administração da Divisão de Terras e Colonização do Ministério da
Agricultura e do Departamento Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho
(art. 7.º), obviamente destinados a núcleos
de colonização com imigrantes, outras terras não lhe foram indicadas nem lhe
foi delegada ou atribuída qualquer competência para procedimentos de
assentamentos rurais diferentes da colonização, ou ainda dotações orçamentárias
para outros fins que não a colonização.
Conclusão é que
a Constituição Federal de 1946 ficou a dever à nação a reforma agrária como o
principal modo de enfrentamento da grave crise social causada pelo latifúndio
na formação territorial do Brasil.
(1) As Constituições do Brasil – A Constituição de 1891, Fundação Projeto Rondon, 1986, p. 1.
(2) Francisco de Assis ALVES, Constituições do Brasil, vol. I, Programa Nacional de Desburocratização – Instituto dos Advogados de São Paulo. Brasília – DF, 1985, p. 20.
[2](3) “Apud” As Constituições no Brasil – A Constituição ..., p. 3
[4] (4) J. L. OSÓRIO, Direito Rural, e Francisco de Malta CARDOSO, Tratado de Terras do Brasil..
[7](7) Derivação de kulak
que, em russo, designa o latifundiário, proprietário de grandes fazendas em que
se empregava trabalho assalariado, surgido com a Reforma camponesa de 1861.
(8)Camponês pobre russo, antes da Revolução Soviética de 1917, e que até a Reforma de 1861 eram servos.
[9] (1) Aliomar BALEEIRO, A Constituição de 1946 – Programa Nacional de Desburocratização, Fundação Projeto Rondon, p. 2.
[10] (2) PCB: Partido Comunista Brasileiro; PTB: Partido Trabalhista Brasileiro; PSD: Partido Social Democrático.