CAPÍTULO IV
Império do Brasil, propriedade privada e terras devolutas.
1) A Constituição imperial
A independência do Brasil, a
separá-lo do reino unido com Portugal e Algarves, não se deu de improviso no
dia Sete de Setembro de 1822.
Em verdade, ela foi adrede concebida
e preparada desde a partida do rei Dom João VI de volta para Lisboa, na data de
26 de abril de 1821, e a assunção do príncipe Dom Pedro I à regência no Brasil
do dito reino unido. Antes do Grito da Independência às margens do riacho
Ipiranga, já se convocara a Assembleia Constituinte do Brasil.
Pelas palavras do Barão Homem de MELO:
”...decreto de 3 de junho de 1822, referendado por José Bonifácio de Andrada e Silva, convocou uma Assembleia Geral Constituinte e legislativa”. José Bonifácio era então o Secretário de Estado dos Negócios do Reino e Estrangeiros e, “no dia 3 de maio de 1823, já firmada a independência, foi a Assembleia solenemente aberta pelo Imperador”. 1
Por causa de aberto conflito político
em torno do projeto constitucional com a Assembleia, “o Imperador em pessoa, no
paço da cidade, dirigira a execução”, “no dia 12 de novembro de 1823, a uma
hora da tarde,“ a dissolução da Constituinte à força armada. 2
Dissolvida a Assembleia, o seu
projeto constitucional serviu de base para a Constituição imperial outorgada em
25 de março de 1824, emendada em 12 de agosto de 1834 pelo Ato Adicional
denominado Lei N.º 16.
O texto original da Constituição de
1823 foi silente sobre os bens públicos em geral, por conseguinte sobre as
terras públicas em específico. No entanto, garantia ao cidadão brasileiro o
direito de inviolabilidade da propriedade privada em toda a sua plenitude com a
única exceção de o bem público exigir o seu uso e emprego; por cuja ocorrência
o cidadão deveria ser previamente indenizado do respectivo valor (artigo 179,
XXII). Este dispositivo constitucional remetia à Lei marcar os casos em que se
poderia dar procedimento e as regras para observar na indenização
correspondente.
Ainda que não mencionado o termo,
verifica-se ali as condições e elementos formadores do instituto da
desapropriação constitucional no Brasil. Como o procedimento foi previsto de
modo genérico quanto aos bens objetivados, é compreensível que as terras rurais
se incluíam no seu objeto.
Lei de 29 de agosto de 1827 estabeleceu a indenização de benfeitorias e solo aos “proprietários, por cujos terrenos se-houverem de abrir as estradas, ou mais obras” (Art. 17), consoante nota de Teixeira de FREITAS. 3
O Ato Adicional de 18 de agosto de
1834, no entanto, veio dar ao procedimento a denominação pelo qual é intitulado
até o presente ao incluir, na competência legislativa das Assembleias
Legislativas Provinciais que criara, “os casos e a forma por que pode ter lugar
a desapropriação por utilidade pública municipal ou provincial”. (Artigo 10, §
3.º).
Quanto aos bens públicos, a aludida
emenda adicional veio suprir ao mínimo a omissão constitucional, ao comandar
que “uma Lei Geral marcará o que são bens provinciais”, em complementação ao
dispositivo que atribuiu às Assembleias Legislativas das Províncias “regular a
administração dos bens provinciais”. (Artigo 11, § 4.º, e Consolidação das Leis
Civis, art. 60).
A lei geral prevista pela
Constituição imperial foi promulgada em 1850, vindo a dispor sobre as terras
devolutas no Império, as de sesmarias, a colonização estrangeira e outras
providências relativas a posse e propriedade rural. (L. n.º 601).
As terras de propriedade privada
abrangiam as que se incorporaram o domínio particular a justo título, sesmaria ou outra concessão do “Governo
Geral ou Provincial”, não incursas em comisso.
À época, para transmissão da
propriedade particular imóvel, além do justo título aquisitivo, requeria-se a
simples tradição da coisa; assegurado o direito de ação pessoal ao adquirente a
quem faltasse a tradição, na prescrição do artigo 908 da Consolidação das Leis
Civis.
Previamente à breve exposição sobre a distinção entre os modos aquisitivo e derivado, ou derivativo, do domínio 4, Teixeira de FREITAS anotou que a ocupação é modo de domínio originário para os particulares sobre as coisas móveis, assim “como foi sobre immoveis para o Estado o domínio originario do territorio do Imperio.” 5
Pode-se depreender dessa
curta explanação de Teixeira de FREITAS que, à época, a ocupação pelos
particulares como causa de domínio não seria admissível para bens imóveis.
Conclui-se também que a possibilidade
jurídica de desapropriação de terras rurais, seja pelo poder central seja pelas
Províncias e municípios, era somente para destinação à utilidade pública; o que
constituía impedimento essencial para uma – impensável naquela altura – desapropriação
dos latifúndios constituídos pelas terras dadas de sesmaria, menos ainda a
objetivar a redistribuição delas aos pequenos posseiros e aos trabalhadores do
campo, composto massivamente por escravos.
2) A Lei de Terras e a Consolidação das Leis Civis.
Darcy RIBEIRO, ex-Reitor da universidade de Brasília, reconhecido antropólogo brasileiro, escritor e político, em entrevista pela televisão nacional, amplamente divulgada em meados da década de 1980, ao fazer cotejamento entre a Lei de Terras do Brasil de 1850 e a lei de terras norte-americana de 1862, concluiu por avaliar que a legislação norte-americana fora benéfica para os trabalhadores rurais, por haver distribuído gratuitamente pequenas áreas de terras aráveis aos pioneiros do Oeste, sob o compromisso de cultivo ao menos por cinco anos consecutivos e estabelecimento de família pelos beneficiários; ao contrário da lei brasileira que estabeleceu a venda como único meio de alienação das terras devolutas e, ainda, condicionada à prova de condições materiais de exploração pelo candidato à aquisição, o que impedia aos trabalhadores rurais sem recursos monetários essa aquisição.
Leo HUBERMAN, acadêmico e escritor
estadunidense, dissertou a respeito da lei de terras norte-americana de 1862,
especialmente sobre a sua motivação e os seus efeitos sobre a economia:
“Assim como a Guerra Civil forçou a
expansão do sistema de estradas de ferro, também forçou a expansão da
agricultura. Milhares de homens estavam em luta – e tinham que ser alimentados.
Era necessário dinheiro para custear a guerra – era preciso levantar esse
dinheiro. As fazendas é que fizeram isso. ... O pão ganhou do algodão – é um
modo simples de exprimir não somente a vitória do norte contra o sul, mas
também a entrada em cena das grandes terras agrícolas do oeste.
O que havia começado nos anos de guerra continuou durante os anos de paz. A Lei de Cessão de Terras de 1862, que dava 160 acres de terra arável no oeste a quem quisesse cultivá-la foi um imã a atrair gente. Os imigrantes continuavam a ser despejados nos Estados Unidos. ... O número de fazendas quase triplicou, de 1860 a 1900; o mesmo se deu com a área cultivada. ...” 6
“... no período de 41 anos, mais de ¼ de um milhão de acres de terra arável foram acrescentados aos existentes – uma quantidade maior que a área produtiva da Itália, Alemanha e França juntas!”. 7
“... O ano de 1890 marcou o término
da fronteira. O fim da fronteira marcou o fim da terra grátis.” 8
Expôs ainda Leo HUBERMAN:
“No período que se seguiu à Guerra
Civil o modo de cultivar também mudou. Primeiro, o fazendeiro médio era
praticamente auto-suficiente. Na sua própria fazenda, ele podia produzir tudo
que quisesse. ... Os produtos de sua
fazenda satisfaziam as necessidades de sua família – e se sobrasse alguma coisa
dava para pagar os impostos ou para comprar alguma coisa de fantasia, que não
podia ser feita dentro da fazenda. Isso se chamava produção para o consumo.
Com o correr do tempo, tudo mudou. O
fazendeiro já não fazia tudo sozinho, e sim se atinha ao cultivo de uma ou duas
culturas. Não era mais auto-suficiente. Tornou-se um especialista. ... A
especialização era perigosa porque o ligava à economia capitalista, com todos
os seus altos e baixos. A produção para consumo era uma coisa, a produção para
troca era outra coisa muito diferente.”
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“Desde a Guerra Civil até o fim desse século a agricultura se expandiu, mas os lucros dos fazendeiros decididamente não aumentaram. O fazendeiro trabalhava duro, sem lucros, ou com pouquíssimo lucro. ...” 9
É perceptível que a agricultura nos Estados Unidos expandiu-se de modo acelerado enquanto o estado norte-americano possibilitou aos imigrantes o acesso fácil às terras virgens e, então, os colonos produziam diversificadamente, para o consumo próprio e para a venda direta a outros consumidores, com lucro ; mas, em seguida, o modo capitalista os forçou à um só tipo de produção, quando passaram a ser meros fornecedores para o agronegócio, sujeitando-os aos riscos das oscilações de preços das bolsas de mercadorias, a levá-los a dificuldades financeiras.
O tempo compreendido entre 17 de julho de 1822, quando o Imperador Pedro I emitiu resolução que suspendeu a concessão de sesmarias, e a vigência da Lei n.º 601 de 1854 ficou conhecido como período de posse, posto que a grande maioria dos possuidores rurais não detinha título legítimo de domínio; logo não eram proprietários. 9.a
Neste passo, a propriedade privada no Brasil teria sido consolidada a partir da promulgação da primeira lei de terras nacional, que viera para atender a necessidade de segurança das posses latifundiárias, em face da prevista carência de mão-de-obra provocada pelo fim do tráfico de escravos, imposto pela Inglaterra. Id
Ante a óbvia
natureza administrava da matéria, a Consolidação das Leis Civis do Brasil,
aprovada em 1858, se limitou a classificar as terras devolutas entre as de
domínio do Estado (Art. 52.º, § 2.º) e a
repetir a definição delas estabelecida pela Lei n.º 601 de 1850, bem assim a
respeitar as “leis especiais” de regulamentação da matéria, expressamente no que
diz respeito à revalidação das concessões feitas e à legitimação de
posse. (Art. 904).
Essas leis
especiais de direito público eram a Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850 e o
seu regulamento, baixado com o Decreto n.º 1.318 de 30 de janeiro de 1854.
A Lei n.º
601 de 1850 restringiu, logo no seu artigo inaugural, a aquisição de terras devolutas
unicamente ao modo de compra:
“Art. 1.°Ficão prohibidas as
acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.” (sic)
As únicas terras
devolutas que poderiam ser concedidas gratuitamente eram “as terras situadas
nos limites do Império com paizes estrangeiros em uma zona de dez léguas” (sic),
consoante exceção estabelecida no mesmo artigo legal suso citado; havendo
o regulamento de 1854 previsto a concessão delas a empresários para o fim de
colonização, em áreas de “dez 10 léguas em Quadro, ou o seu equivalente por cada
colônia de 1.600 almas, sendo as terras de cultura, e 400 sendo campos próprios
para criação de animais”, inclusive com subsídio às empresas a título de ajuda
pelas dificuldades delas no empreendimento. (Dec. cit., art. 85)
No geral, quanto à colonização, o
Governo ficou autorizado a trazer, com encargos próprios, “colonos livres” para
serem empregados em estabelecimentos agrícolas ou em trabalhos da administração
pública, ou na formação de colônias. (Lei cit. art. 18)
Excluíam-se do domínio nacional as terras devolutas concedidas, pela Lei n.º 514 de 28 de outubro de 1818, às Províncias para fins de colonização, com área de seis léguas em quadro por diferentes lugares em cada Província, nas quais se vedou o emprego de braços escravos, como anotado por Teixeira de FREITAS. 11
Essas outras terras devolutas, integrativas dos bens provinciais e destinadas à colonização, tinham a sua administração regulada pelas Assembleias Legislativas das Províncias, conforme o artigo 60 da Consolidação das Leis Civis. 12
A concessão do domínio
de terras devolutas para as Províncias, confirmada por Av. de 24 de março de
1851Idem, viria a ser a gênese da disposição
constitucional republicana de 1891 que atribuiu aos Estados todas as terras
devolutas, a exceção da porção indispensável para a defesa das fronteiras,
fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. (Const. Fed.
de 1891, art. 64).
Dispôs a Lei n.º 601 de
1850 o que são terras devolutas:
“Art. 3.° São terras devolutas :
§ 1.° As que não se acharem applicadas á algum uso publico,
nacional, provincial ou municipal.
§ 2.° As que não se acharem no domínio particular por
qualquer titulo legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões
do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta de
cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3.° As que não se
acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do Governo, que, apezar de
incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4.° As que não se acharem occupadas por posses que, apezar
de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.” (sic)
Comisso designa a perda das sesmarias cujos
titulares não haviam cumprido as condições de medição, confirmação e cultura
das terras recebidas a tal título. (Lei cit., art. 2.º, § 3.º, e Consolidação
das Leis Civis, art. 53, § 2.º)
Por isso, os seus possuidores –
caídos em comisso – perderiam “o direito a que tinham a serem
preenchidos das terras concedidas por seus títulos ou por favor da presente
lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem
com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.” (L. cit.,
art. 8.º)
Messias JUNQUEIRA, buscou sintetizar
a definição de terras devolutas por exclusão das demais, ínsita no artigo legal
retro transcrito:
“Terras devolutas são as que não
estão incorporadas ao patrimônio público, como próprios, ou aplicadas ao uso
público, nem constituem objeto de domínio ou de posse particular, manifestada
esta em cultura efetiva e moradia habitual” 13.
Em desarmonia com o comando
norteador da política de regulação geral de terras ínsita no Parágrafo Segundo
do artigo 3.º da Lei n.º 601 de 1854 - são
devolutas as terras de
sesmarias incursas em comisso
por não cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura - o
Decreto n.º 1.318, de 1854, preceituou:
“Art. 22. Todo o possuidor de terras que tiver titulo
legitimo da acquisição do seu domínio, quer as terras que fizerem parte
delle tenhão sido originariamente adquiridas por posses dos seus antecessores,
quer por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem
cultivadas, se acha garantido em seu domínio, qualquer que fôr a sua extensão,
por virtude do disposto no § 2.° do Art. 3.º da Lei n. 601 de 18 de Setembro de
1850, que exclue do domínio publico, e considera como não devolutas todas as
terras que se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo.”
Prima facie, verifica-se que o disposto pelo artigo 22 do Decreto n.º
1.318 de 1854 confrontou o conceito histórico do que são terras devolutas
originalmente, que se pode exprimir resumidamente como terras devolvidas ao estado pelo particular que não as tenha cultivado,
e contrariou o interesse público ao desconsiderar a condição resolutiva das
doações de sesmarias que não viessem a ser efetivamente cultivadas.
Teixeira de FREITAS não
se pronunciou diretamente a respeito desse dispositivo regulamentar
contraditório à norma regulamentada, mas mostrou-se implicitamente assente com
ele ao explicitar, com arrimo no artigo seguinte imediato àquele (art. 23), que
os possuidores a título legítimo não precisariam de novos títulos (de
revalidação) para gozar, hipotecar ou alienar os terrenos do seu domínio,
vindo mesmo a tachar de nulidade, com relação a essas terras, a
disposição do artigo 11 da Lei de Terras, que tornou obrigação dos posseiros
tirarem títulos de legitimação, sem os quais não poderiam hipotecar nem alienar
a sua posse.
Faz- se necessário, neste ponto,
considerar que, desde quando a Coroa portuguesa se apossou das terras
originariamente pertencentes aos nativos de Pindorama, é sabido que todo
domínio privado no Brasil tem origem em ato de transferência do domínio
público. Também é sabido que a prescrição aquisitiva de terras devolutas sempre foi muito questionada na terra
brasilis até a dirimência da questão pelo Código Civil de 1916.
Sob o aspecto de
aquisição da propriedade de terras fundada na simples posse restou tão somente a
legitimação de terras que, como era próprio,
se consumava por ato do Poder Público.
Há ainda a se considerar
que, por força da hierarquia das leis, uma norma regulamentar cede vigência a
norma da lei regulamentada, quando com ela contraditória.
Também é discutível se o título legítimo de que cuida o Art.3.º, § 2.º, da Lei n.º 601 de 1850 seria o mesmo título justo de que trata o Art. 907 da Consolidação das Leis Civis, dado que esse título é modo derivativo de aquisição de domínio, comandado por disposição essencialmente de natureza jurídica privada, não de direito público, nem é demonstrativo da legítima apartação do bem do domínio público originário; e ainda que a decisão judiciária de que trata a disposição legal mencionada seria a de resolução de conflito sobre direitos privados. 14
É significativo
verificar, ao cabo, que do rol dos justos títulos constante das
Ordenações, consoante alinhamento feito por Teixeira de FREITAS, não se
encontra sesmaria nem outro tipo característico de emanação do Poder Público,
mas apenas atos próprios de direito privado, tais como:
”L. 4,º T. 58 § 3.º - vendo primeiro as cartas das compras, escaimbos, ou doações; - § 4.º - carta de aforamento feita pelo senhorio da cousa, - L. 1º T. 78 ª 8.º - escripturas das vendas, escaimbos, aforamentos, e de outros quaisquer contractos.” Id.
Com o suposto escopo de
incentivo à produção e ao povoamento do interior, a Lei de Terras comandou em
seu artigo 4.º que:
“Serão revalidadas as sesmarias ou outras concessões
do governo geral ou provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de
cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou de quem
os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com
que forão concedidas”. (sic)
A par com a revalidação,
que interessava sobremaneira aos latifundiários de então, sesmeiros desidiosos,
a Lei de Terras instituiu a legitimação de posse, por seu artigo 5.º,
pretensamente mais favorável aos pequenos agricultores despossuídos de
quaisquer títulos:
Art. 5.° Serão legitimadas as
posses mansas e pacíficas, adquiridas por occupação primaria ou havidas do
primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e
morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, ...(sic)
A posse legitimável deveria ter a área máxima igual a das últimas sesmarias concedidas na mesma Comarca ou nas vizinhas, vedada a legitimação da posse que se situasse dentro de sesmaria, ou outra concessão do Governo, não incursa em comisso ou revalidada, a cujo posseiro somente cabia direito a indenização pelas benfeitorias. (Art. cit., §§ 1.º e 2.º)
A Lei de Terras cominava
despejo, com perda das benfeitorias, ao posseiro
que derrubasse mato e pusesse fogo nas terras devolutas, ou alheias
(particulares), e lhe apenava ainda prisão, multa e indenização dos danos que
causasse, mas excluía de tais sanções os herdeiros confinantes. (2.º)
Pode-se considerar que a
teleologia dessa norma de aparente predição ecológica era criar obstáculo ao
procedimento massivo da legitimação de posse do pequeno agricultor que a
própria lei de terras instituíra, vista a excludente do tipo infracional que
criou conferida a herdeiro (heréo) confinante, cujo único fundamento
perceptível seria por esse deter um título privado reconhecido.
Tanto fazia
que a derrubada de mato e o fogo posto tivessem se dado em proporções mínimas,
para se levantar uma moradia modesta e se cultivar uma horta de subsistência -
inclusive em atendimento à exigência legal para a obtenção do título de
legitimação - ou se dado em maior amplitude, para introduzir criação de grande
porte ou plantação de monocultura.
Pela dicção
do mencionado artigo 2.º da Lei de Terras de 1850, os latifundiários da
época - sesmeiros ou concessionários - não eram mesmo abrangidos por aquela
norma punitiva, dado que não eram eles posseiros, mas proprietários esteados
em justos títulos, nos termos da lei civil, ou legalmente
revalidáveis.
A exceção contida no Parágrafo Segundo, do citado artigo quinto da Lei
n.º 601 de 1850, incluiu entre os beneficiados com a legitimação os posseiros
cujas respectivas posses, dentro de sesmarias, ou outras concessões
governamentais, tenham sido declaradas boas por sentença transita em julgado em
litígio contra sesmeiro ou
concessionário, e as que tenham sido estabelecidas antes
da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; ou ter
sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.
Na ocorrência da legitimação de posse tratada
pelo mencionado Parágrafo Segundo, ressalvou-se ao respectivo sesmeiro, ou
concessionário, o direito de ficar com o terreno que lhe sobejar, ou entrar em
rateio igual com os posseiros legitimáveis, como se posseiro também fosse.
(art. cit., § 3.º)
O tratamento dado pela lei enfocada aos
campos de uso comum foi de conservá-los como tal, em sua inteireza, enquanto
lei não dispuser em contrário. (art. cit,§ 4º).
O artigo 14 da Lei de Terras autorizou
que o Governo vendesse as terras devolutas apuradas, expurgadas das revalidadas
e legitimadas, por preço superior ao mínimo de meio real, um real, real e meio
e dois réis por braça quadrada (4,84 m²), conforme a qualidade e situação dos
lotes, com pagamento à vista, previamente medidas, divididas, demarcadas e
descritas.
Ante a dificuldade de
grande parte dos pequenos agricultores posseiros em arcar com os ônus do
preço estabelecido na lei e das custas da medição regulamentada (Dec. cit.,
art. 55), o Av. n. 126 de 10 de Abril de 1858 determinou, quando a posse não
excedesse a 250,000 braças quadradas, equivalente a 121,0 hectares, e não tivesse
meios para essas despesas, que a autoridade encarregada da medição para as
legitimações de posse (Juiz Comissário), deveria informar ao Presidente da
Província para decisão dele a respeito, cujo diploma veio de ser aditado por
Av. de 31 de maio de 1875, que prescreveu a possibilidade de as terras
objeto de posses legitimáveis ocupadas por pobres, se não excedessem “às do
quadrado 1100 metros por lado”, os mesmos 121,0 hectares, serem concedidas pelo preço
mínimo de venda estabelecido, correndo pelo Estado as despesas de medição.
No entanto, a Lei de
Terras deitou regras fomentadoras da colonização com mão-de-obra estrangeira,
ao ponto de ordenar que o produto da venda de terras de que tratava seria
“exclusivamente aplicado na medição de terras devolutas e na importação de
colonos livres” (Lei cit., art. 19); propósito observado na legislação
sucedânea, inclusive na República, quando se instituiu o INIC - Instituto
Nacional de Imigração e Colonização.
Com o tráfico de
escravos interditado pela Inglaterra, a potência naval hegemônica na época,
passou-se a se estimar o fim do trabalho escravo no Brasil, mas nem a Lei de
Terras nem a legislação que se lhe seguiu procedeu a alguma previsão normativa
para o problema da desocupação dessa mão-de-obra escrava que viria se tornar
livre:
“Não
foi por acaso que a Lei de Terras nasceu em 1850. Duas semanas antes de ela
entrar em vigor, outra norma histórica havia sido assinada por Dom Pedro II: a
Lei Eusébio de Queirós. Foi a primeira das leis abolicionistas. Por meio dela,
o Brasil, pressionado pela Grã-Bretanha, proibiu a entrada de novos escravos
africanos no território nacional. Embarcações britânicas passaram a interceptar
navios negreiros no Oceano Atlântico e confiscar a carga humana.
Os
latifundiários entenderam que a escravidão, mais cedo ou mais tarde, chegaria
ao fim e que os seus cafezais corriam o risco de ficar sem mão de obra. A Lei de
terras eliminaria esse risco. Uma vez tornadas ilegais a invasão e a ocupação
da zona rural, tanto os ex-escravos quanto os imigrantes pobres europeus
ficariam impedidos de ter suas próprias terras, ainda que pequenas, e
naturalmente se transformariam em trabalhadores abundantes e baratos para os
latifúndios.
Da mesma forma, os pequenos posseiros que fossem expulsos de seus antigos lotes, excluídos da anistia por não poderem pagar as taxas previstas na Lei de Terras, também reforçariam o contingente assalariado dos cafezais.” 15
Com a abolição da
escravatura a caminho, a medida do poder do latifundiário foi passando da
quantidade de escravos que possuía para a extensão de terras de que era senhor.
Era a transformação da terra em mercadoria, no contexto da expansão mundial do
capitalismo. (Idem)
O regime estabelecido
pela Lei de Terras de 1850 acendrou o campo do Brasil para o fortalecimento do latifúndio, principalmente o dedicado às
plantations, voltadas quase com
exclusividade para a exportação de açúcar
e café.
“Estudiosos da questão
dizem que o histórico predomínio do latifúndio levou ao surgimento dos
trabalhadores rurais sem terra e tornou rotineira a violência no campo. Também
condenou a agricultura brasileira a um longo período de atraso técnico... Caso
os lotes fossem pequenos, eles teriam sido forçados a investir em novas
tecnologias para aproveitá-los ao máximo.” (Ibidem)
_____
(1) Barão Homem de MELO, As Constituições no Brasil – Constituição de 1824, Fundação Projeto Rondon, 1986, p.3.
(2) Idem, p. 9.
(3) Teixeira De FREITAS, Consolidação das Leis Civis, ...
p. 529.
(5) A. Teixeira de FREITAS, op. cit., ps. 526.
(6) Leo HUBERMAN, História da Riqueza dos EUA (Nós, o Povo), 2.ª ed. – 1978, Edit. Brasiliense, S. Paulo, p. 176-
(2) [7] Idem, p. 177.
(3) [8] Ibidem, p. 178.
(7) [9.a] João da C. GONÇALVES Neto et alii, A Formação da Propriedade Fundiária no Brasil: A Lei de Terras de 1850, Ver. Themis,Fortaleza,v.17,n.º2,jul./dez.2019,os.173-195. <HTTPS://revistathemis.tjce.jus.br/THEMIS/article/download/683/pdf/2627>
[10] Equivalente a 23.309,89 hectares.
(11) A. Teixeira de FREITAS, Terras e Colonisação, 1882, B. L. Garnier, R. de Janeiro, p. 2.
(12) Lei de 12.8.1834, art. 11, § 4.º, Av. de 6.4.1835, Circ. de 13.10.1838, L. n.º 601 de 18.9.1850, art. Art. 3º, § 1º, apud Teixeira de FREITAS, Cons. das Leis Civis, p.67.
(13) Messias JUNQUEIRA, As Terras Devolutas na Reforma Agrária, Edit. Gráfica da Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1964, p.68.
(14) A. Texeira de FREITAS, op. cit.,p. 534.
(15) Ricardo WESTIN, Questão Agrária, Agência Senado/Arquivo do Senado – Arquivo S, Edição 71, 14.09.2020 (Portal Senado Notícias).
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