CAPÍTULO VI
A função social da propriedade imóvel
rural no direito positivo do Brasil. A desapropriação por interesse social para
fins de reforma agrária. As terras de domínio da União Federal e as
desapropriadas pelo INCRA.
Aquele Código Civil foi alheio à crise social estrutural pela qual
passava o mundo ocidental, que originou logo em seguida respostas políticas e
jurídicas, com as normas de proteção ao trabalho e socializantes das terras
rurais na Constituição mexicana de 1917 e os princípios do estado social na
Constituição alemã de 1921 (Weimar).
Sylvio Campanema de SOUZA (1938-2020), jurista e
desembargador no estado do Rio de Janeiro, teria constatado que os três
personagens principais do Código Civil de 1916 seriam o marido, o contratante e
o proprietário, a revelar uma sociedade arrimada no patriarcalismo, no
contratualismo (pacta sunt servanda), na estratificação econômica e na
exclusão social das camadas populares.
Ressalvadas algumas poucas limitações, tais como
as decorrentes do direito de vizinhança e das posturas municipais - essas de
rara aplicabilidade ao campo, o uso da propriedade privada rural era na prática
um direito absoluto, escorado no artigo 524 do antigo Código Civil, a ditar que
a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus
bens, e de reavê-los do poder de quem injustamente os possua; cuja garantia
era complementado por outra assertiva, disposta no seguinte:
“Art. 527. O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário.“
§ 1.º A propriedade
da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente,
favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam,
assim como das suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; assegura
a conservação dos recursos naturais; e observa as disposições que regulam as
justas relações de trabalho entre os que a possuem e aqueles que as cultivam.”
O princípio
da função social da propriedade, fator limitador do exercício do direito de
propriedade, foi adotado pela Constituição Federal
de 1988 com a síntese “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5.º,
XXIII), para dispor sobre os elementos do seu conceito, relativamente ao meio
rural, no Capítulo III - Da Política Agrícola e Fundiária e a Reforma Agrária, do
Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira:
“Art. 186.
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I –
aproveitamento racional e adequado;
II –
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III –
observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” (Sic)
A atual Constituição Federal, no Capítulo VI - Do Meio Ambiente, do Título VIII - Da Ordem
Social, acresceu a função ecológica da fauna e da flora como fator limitador ao
uso da propriedade, incumbindo ao Poder Público, para assegurar a efetividade
do meio ambiente ecologicamente equilibrado:
“Art. 225
......................................................................................
§ 1.º
.............................................................................................
VII – proteger
a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua ecológica, provoquem a extinção das espécies
ou submetam os animais a crueldade.” (Sic)
O novo Código Civil brasileiro, Lei n.º 10.406 de 2002, vigente desde 12.01.2003, diferentemente do antigo Código, procedeu a minudente normatização desse preceito da função social da propriedade, condicionando o exercício da faculdade do proprietário de usar, gozar e dispor da coisa que lhe pertence, bem de reavê-la do poder de quem a venha possuir ou deter injustamente (art. 1.228, “caput”), às finalidades sociais, econômicas, ecológicas, culturais e ambientais da coisa, ipsis litteris:
“Art.1.228......................................................................................................... §
1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico, e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas.”
De importância maior na
normatização da função social da propriedade no Brasil é a característica da
sua atualidade com as preocupações e diretivas mundiais relativas ao meio
ambiente, tendo ido além dos fundamentos econômicos e sociais, para abranger razões
de ordem ecológica, cultural e climática.
No objetivo do cumprimento da
função social da propriedade, as normatizações agrária e civil são
complementadas pela do direito ambiental, notadamente pela Lei n.º 12.651, de
25.05.2012, que dispõe sobre as áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva
Legal, entre outras normas gerais relativas às florestas e demais formas de
vegetação nativa, bem como à biodiversidade do solo, dos recursos hídricos e da
integridade do sistema climático.
A citada lei ambiental
explicita que as florestas e demais formas de vegetação nativa são bens de
interesse comum a todos os habitantes do País, limitando o exercício do direito
de propriedade das terras que elas revestem e qualificando de uso irregular da
propriedade as ações e omissões contrárias às suas disposições (art. 2.º, §
1.º).
A Área de Preservação
Permanente (APP) é definida por lei como a coberta ou não por vegetação
nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a
estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e
flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, cuja
vegetação deve ser mantida pelo ocupante a qualquer título, pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado, limitado o seu uso:
a)
nas pequenas propriedades ou posses familiares,
ao plantio de culturas temporárias e sazonais de vazante de ciclo curto na
faixa de terra que fica exposta no período de vazante de rios ou lagos desde
que não implique supressão de novas áreas de vegetação nativa, seja conservada
a qualidade da água e do solo e seja protegida a fauna silvestre;
b)
nos imóveis com até 15 (quinze) módulos
fiscais, com faixas marginais de curso d’água natural perene e intermitente ou com
áreas em torno dos lagos e lagoas naturais, à prática da aquicultura e a
infraestrutura física diretamente a ela associada, que não implique novas
supressões de vegetação nativa e seja realizada de acordo com o licenciamento
pelo órgão ambiental competente;
c)
nos pantanais e planícies pantaneiras, à
exploração ecologicamente sustentável, com novas supressões de vegetação nativa
condicionada a autorização do órgão estadual do meio ambiente; e
d)
nas áreas de inclinação entre 25° e 45° graus,
ao manejo florestal sustentável e o exercício de atividades agrossilvipastoris,
vedada a conversão de novas áreas.
(Lei cit., arts. 3.º, II; 7º; 4.º, §§ 5.º e
6.º; 10; e 11).
A Reserva Legal é legalmente
definida como a área coberta com vegetação nativa localizada no interior de uma
propriedade ou posse rural com a função de assegurar o uso econômico de modo
sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a
reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da
biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora
nativa, que deve ser conservada pelo proprietário do imóvel rural, possuidor ou
ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou
privado, sem prejuízo da existência de área de preservação permanente e
delimitada em percentuais mínimos sobre a área total do imóvel, segundo se
situe na Amazônia Legal ou fora dela, limitado o seu uso à exploração mediante
manejo sustentável da vegetação florestal, previamente aprovado pelo órgão ambiental
competente, nas seguintes condições:
a) exploração
seletiva sem propósito comercial para consumo na propriedade, independente
de autorização dos órgãos competentes, com dever do ocupante declarar
previamente ao órgão ambiental a motivação da exploração e o volume explorado, restrito
a 20 (vinte) metros cúbicos anuais; e
b) exploração
seletiva com propósito comercial, dependente de
autorização do órgão ambiental competente, com dever do ocupante de (I) não
descaracterizar a cobertura vegetal e não prejudicar a conservação da vegetação
nativa da área; (II) assegurar a manutenção da diversidade
das espécies; e (III) conduzir o manejo de espécies
exóticas com a adoção de medidas que favoreçam a regeneração de espécies
nativas. (Lei cit., arts. 3.º, III; 12; 17; 20; 23; 17; e 22)
É conclusão, portanto, que o
conceito de função social da propriedade no Direito Positivo brasileiro, no que
concerne ao imóvel rural, alargou-se de modo que, aos seus elementos
fundamentais sociais e econômicos, se juntaram os de natureza ecológica, cultural
e ambiental.