quarta-feira, 14 de agosto de 2024

A QUESTÃO AGRÁRIA. A função social da propriedade imóvel rural no direito positivo do Brasil. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. As terras de domínio da União Federal e as desapropriadas pelo INCRA. 1. A normatização da função social da propriedade no Brasil.Pedro Cordeiro da Silva.

 

CAPÍTULO VI

A função social da propriedade imóvel rural no direito positivo do Brasil. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. As terras de domínio da União Federal e as desapropriadas pelo INCRA.

 1.     A normatização da função social da propriedade no Brasil.

 O Código Civil de 1916 – Lei n.º 3.071, de 01.01.1916 - espelhou o domínio institucional da elite econômica brasileira, constituída por grandes proprietários rurais e financistas, ao afirmar a propriedade privada como pilar da posse e uso dos bens imóveis, no espírito do pensamento liberal mais puro.


Aquele Código Civil foi alheio à crise social estrutural pela qual passava o mundo ocidental, que originou logo em seguida respostas políticas e jurídicas, com as normas de proteção ao trabalho e socializantes das terras rurais na Constituição mexicana de 1917 e os princípios do estado social na Constituição alemã de 1921 (Weimar).

Sylvio Campanema de SOUZA (1938-2020), jurista e desembargador no estado do Rio de Janeiro, teria constatado que os três personagens principais do Código Civil de 1916 seriam o marido, o contratante e o proprietário, a revelar uma sociedade arrimada no patriarcalismo, no contratualismo (pacta sunt servanda), na estratificação econômica e na exclusão social das camadas populares.

Ressalvadas algumas poucas limitações, tais como as decorrentes do direito de vizinhança e das posturas municipais - essas de rara aplicabilidade ao campo, o uso da propriedade privada rural era na prática um direito absoluto, escorado no artigo 524 do antigo Código Civil, a ditar que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem injustamente os possua; cuja garantia era complementado por outra assertiva, disposta no seguinte:

 “Art. 527. O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário.“

 A função social da propriedade, prenunciada em disposições vagas das Constituições de 1934 (art. 113, item 17, primeira parte) e de 1946 (art. 147), foi primeiro efetivamente normatizada no direito brasileiro pela legislação agrária, com a disposição do artigo 2.º, Parágrafo Primeiro, do Estatuto da Terra – Lei n.º 4.504, de 30.11.1964, ao fixar os elementos de ordem social, econômica e ecológica constitutivos do seu conceito, ad verbum:

 “Art. 2.º ......................................................................................

§ 1.º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente, favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como das suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; assegura a conservação dos recursos naturais; e observa as disposições que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e aqueles que as cultivam.”

 

O princípio da função social da propriedade, fator limitador do exercício do direito de propriedade, foi adotado pela Constituição Federal de 1988 com a síntese “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5.º, XXIII), para dispor sobre os elementos do seu conceito, relativamente ao meio rural, no Capítulo III - Da Política Agrícola e Fundiária e a Reforma Agrária, do Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” (Sic)

 A atual Constituição Federal, no Capítulo VI - Do Meio Ambiente, do Título VIII - Da Ordem Social, acresceu a função ecológica da fauna e da flora como fator limitador ao uso da propriedade, incumbindo ao Poder Público, para assegurar a efetividade do meio ambiente ecologicamente equilibrado:

“Art. 225 ......................................................................................

§ 1.º .............................................................................................

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade.” (Sic)

 O novo Código Civil brasileiro, Lei n.º 10.406 de 2002, vigente desde 12.01.2003, diferentemente do antigo Código, procedeu a minudente normatização desse preceito da função social da propriedade, condicionando o exercício da faculdade do proprietário de usar, gozar e dispor da coisa que lhe pertence, bem de reavê-la do poder de quem a venha possuir ou deter injustamente (art. 1.228, “caput”), às finalidades sociais, econômicas, ecológicas, culturais e ambientais da coisa, ipsis litteris:

“Art.1.228.........................................................................................................   § 1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”

 Dessarte, a função social da propriedade, preconizada desde as primeiras décadas do século XX, foi incorporado ao Direito Privado brasileiro pelo Código Civil de 2002, cumprindo os ditames da Constituição Federal de 1988 e perfilhando a normatização da legislação agrária adotada ainda na década de 1960.

De importância maior na normatização da função social da propriedade no Brasil é a característica da sua atualidade com as preocupações e diretivas mundiais relativas ao meio ambiente, tendo ido além dos fundamentos econômicos e sociais, para abranger razões de ordem ecológica, cultural e climática.

No objetivo do cumprimento da função social da propriedade, as normatizações agrária e civil são complementadas pela do direito ambiental, notadamente pela Lei n.º 12.651, de 25.05.2012, que dispõe sobre as áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal, entre outras normas gerais relativas às florestas e demais formas de vegetação nativa, bem como à biodiversidade do solo, dos recursos hídricos e da integridade do sistema climático.

A citada lei ambiental explicita que as florestas e demais formas de vegetação nativa são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, limitando o exercício do direito de propriedade das terras que elas revestem e qualificando de uso irregular da propriedade as ações e omissões contrárias às suas disposições (art. 2.º, § 1.º).  

A Área de Preservação Permanente (APP) é definida por lei como a coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, cuja vegetação deve ser mantida pelo ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, limitado o seu uso:

a)     nas pequenas propriedades ou posses familiares, ao plantio de culturas temporárias e sazonais de vazante de ciclo curto na faixa de terra que fica exposta no período de vazante de rios ou lagos desde que não implique supressão de novas áreas de vegetação nativa, seja conservada a qualidade da água e do solo e seja protegida a fauna silvestre;

b)     nos imóveis com até 15 (quinze) módulos fiscais, com faixas marginais de curso d’água natural perene e intermitente ou com áreas em torno dos lagos e lagoas naturais, à prática da aquicultura e a infraestrutura física diretamente a ela associada, que não implique novas supressões de vegetação nativa e seja realizada de acordo com o licenciamento pelo órgão ambiental competente;

c)     nos pantanais e planícies pantaneiras, à exploração ecologicamente sustentável, com novas supressões de vegetação nativa condicionada a autorização do órgão estadual do meio ambiente; e

d)     nas áreas de inclinação entre 25° e 45° graus, ao manejo florestal sustentável e o exercício de atividades agrossilvipastoris, vedada a conversão de novas áreas.

(Lei cit., arts. 3.º, II; 7º; 4.º, §§ 5.º e 6.º; 10; e 11).

 A Reserva Legal é legalmente definida como a área coberta com vegetação nativa localizada no interior de uma propriedade ou posse rural com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa, que deve ser conservada pelo proprietário do imóvel rural, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, sem prejuízo da existência de área de preservação permanente e delimitada em percentuais mínimos sobre a área total do imóvel, segundo se situe na Amazônia Legal ou fora dela, limitado o seu uso à exploração mediante manejo sustentável da vegetação florestal, previamente aprovado pelo órgão ambiental competente, nas seguintes condições:

a) exploração seletiva sem propósito comercial para consumo na propriedade, independente de autorização dos órgãos competentes, com dever do ocupante declarar previamente ao órgão ambiental a motivação da exploração e o volume explorado, restrito a 20 (vinte) metros cúbicos anuais; e

b) exploração seletiva com propósito comercial, dependente de autorização do órgão ambiental competente, com dever do ocupante de (I) não descaracterizar a cobertura vegetal e não prejudicar a conservação da vegetação nativa da área; (II) assegurar a manutenção da diversidade das espécies; e (III) conduzir o manejo de espécies exóticas com a adoção de medidas que favoreçam a regeneração de espécies nativas. (Lei cit., arts. 3.º, III; 12; 17; 20; 23; 17; e 22)

É conclusão, portanto, que o conceito de função social da propriedade no Direito Positivo brasileiro, no que concerne ao imóvel rural, alargou-se de modo que, aos seus elementos fundamentais sociais e econômicos, se juntaram os de natureza ecológica, cultural e ambiental.

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