quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A QUESTÃO AGRÁRIA - CAPÍTULO VI. A função social da propriedade imóvel rural no direito positivo do Brasil. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. As terras de domínio da União Federal e as desapropriadas pelo INCRA. Itens 2. e 3. Pedro Cordeiro da Silva.

 

 

2.     A desapropriação para fins de reforma agrária na Constituição Federal de 1946.

O Código Civil de 1916 não incluiu a desapropriação entre os modos aquisitivos de propriedade.

Considerado que o mencionado Código é essencialmente regulador do Direito Privado, não é estranhável aquela omissão, pois que a desapropriação é modo de aquisição característico do Poder Público. No entanto, por implicar a desapropriação na perda da propriedade, mormente privada, a antiga lei geral civil a incluiu (art. 590) como modo de extinção da propriedade, a par com a alienação, a renúncia, o abandono e o perecimento do imóvel (art. 589), como o fez também o novo Código Civil brasileiro (art. 1.275, V). 

Em que pese o antigo Código Civil não haver disposto a obrigatoriedade de transcrição da sentença judicial de julgamento da indenização expropriatória no registro público de imóveis, esse título extintivo de propriedade imóvel ficou sujeito a averbação de cancelamento no registro do imóvel desapropriado, pelo menos a partir da vigência do Decreto n.º 4.857, de 09.11.1939, atrás citado (art. 289).

A nova Lei de Registros Públicos - Lei n.º 6.015, de 31.12.1973 - não apenas prescreveu a matrícula no registro de imóveis “da desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de desapropriação, fixar o valor da indenização” (arts. 167, I, 34), como a normatizou com efeito de obligatio faciendi:

 

”Art.169 Todos os atos enumerados no artigo 167 são obrigatórios e efetuar-se-ão no cartório da situação do imóvel, ...”

Logo, é dever do órgão do Poder Público desapropriante promover a abertura de matrícula, no Registro de Imóveis competente, para o imóvel que desapropriar, com o registro da sua titularidade, incontinenti ao procedimento da averbação, por cancelamento, da extinção do direito real objeto da desapropriação (art. 167, inc. II, n. 2). 

O Código de 1916, lei de essência liberal pura, não previu o interesse social entre os modos de extinção da propriedade por desapropriação, limitando-se, nos termos do seu artigo 590, aos motivos de necessidade pública, com as finalidades de defesa do território nacional; de segurança pública; de socorro público, em casos de calamidade, salubridade pública (§1.º), e de utilidade pública, com as finalidades de fundação de povoações e estabelecimentos de assistência, educação ou instrução pública; de abertura, alargamento ou prolongamento de ruas, praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias públicas; de construção de obras, ou estabelecimentos, destinados ao bem geral de uma localidade, sua decoração e higiene; e de a exploração de minas (§ 2.º).

A desapropriação por interesse social foi introduzida no Direito brasileiro pela Constituição Federal de 1946, que a previu como ressalva limitadora ao direito de propriedade, no Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais:

 

“Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

   .................................................................................................

§ 16 É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social*[1], mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.”

A prescrição constitucional da desapropriação por interesse social visou instrumentalizar o Poder Público na promoção da distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, na observância do princípio da função social da propriedade, contida na expressão “O uso da propriedade será condicionada ao bem-estar social” (art. 147).

O instituto da desapropriação por interesse social, necessária para a efetivação de um programa de reforma agrária, passou longo tempo sem normatização legal, em resultado da pressão das forças conservadoras, interessadas na manutenção das suas propriedades latifundiárias, inclusive por motivação política, dado que o domínio fundiário com “mando de baraço e cutelo”, lhes ensejava “eleitores de cabresto” nas regiões dominadas, proporcionadores de suas próprias eleições e dos candidatos por eles apoiados.1[2][3]

Os conservadores, contrários à regulação da desapropriação por interesse social, arguiam escassez de recursos do Tesouro Público para arcar com os ônus da promoção da reforma agrária, considerada a imposição constitucional de prévia e justa indenização em dinheiro nas desapropriações que se fariam.

No objetivo do enfrentamento do agravamento clamoroso da questão agrária no País, no governo do Presidente João Goulart foi promulgada, a 10 de setembro de 1962, a Lei n. 4.132, que definiu os casos de desapropriação por interesse social e dispôs sobre a sua aplicação, prescrevendo logo no seu início:

“Art. 1.º A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal.”

Com vistas à realização dos elementos constitutivos da função social da propriedade, exprimidos no artigo 1.º, retro transcrito, a Lei n.º 4.132 de 1962 marcou os casos em que o Poder Público interviria mediante a desapropriação por interesse social de áreas passíveis de aproveitamento rural:

Art. 2º Considera-se de interesse social:

I - o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;

II - a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola;

III - o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:

......................................................................................................                   VI - as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas;

VII - a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.”

A fundamentação essencialmente de caráter socioeconômico para a desapropriação por interesse social do imóvel rural revela-se na dicção do Parágrafo Primeiro do citado Artigo Segundo, ao firmar que “O disposto no item I deste artigo só se aplicará nos casos de bens retirados de produção ou tratando-se de imóveis rurais cuja produção, por ineficientemente explorados, seja inferior à média da região, atendidas as condições naturais do seu solo e sua situação em relação aos mercados.” (sic)

Conquanto a previsão de desapropriação em causa incluísse outras finalidades afora a vinculada à função social da propriedade, como a ecológica (art. cit. inc. VII), no fundo também de interesse social, esse instrumento expropriatório poderia servir para “o estabelecimento e a manutenção de colônias e cooperativas de povoamento e trabalho agrícola” (art. cit., inc. III), que não atende ao escopo nem aos objetivos de reforma agrária.  

Nesses dois primeiros artigos da Lei n. º 4.132 de 1962, se dispôs de modo geral sobre a motivação sócioeconômica e os objetivos a alcançar com a desapropriação por interesse social, contudo sem a rigor estabelecer o conceito da função social da propriedade e, no caso da propriedade rural, deixou-se de mencionar elementos importantes da sua constituição. 

A premência no enfrentamento da questão agrária induziu, de certo, a lei em foco a marcar dois anos, contados a partir da decretação da medida, para o Poder expropriante promover a desapropriação por interesse social e dar início às providências de aproveitamento do bem expropriado (Lei cit., art. 3.º), prazo esse bem menor do que o de cinco anos assinalado para os casos de desapropriação por necessidade ou utilidade pública (Lei n. 3.365, de 21.06.1941).

  Com o fito de promover a reforma agrária com a utilização da desapropriação por interesse social, de que trata a mencionada Lei n.º 4.132 de 1962, ainda no governo do Presidente João Goulart foi editada a Lei Delegada n.º 11, de 11.10.1962, instituindo a autarquia denominada Superintendência de Política Agrária (SUPRA),  por transformação do Serviço Social Rural - SSR, do Instituto Nacional de Imigração e Colonização - INIC, do Conselho Nacional da Reforma Agrária CNRA e do Estabelecimento Rural do Tapajós (art. 1º).

A Lei Delegada n.º 11 de 1962 conferiu à SUPRA as atribuições de planejar, promover, e fazer executar a reforma agrária, bem ainda de colaborar na formulação da política agrária e, em caráter supletivo, adotar nesse objetivo as medidas complementares de assistência técnica, financeira, educacional e sanitária, afora outras que lhe viessem a ser concedidos por lei ou regulamento. (art. 2.º)

Por disposição determinada no Parágrafo único do seu artigo 2.º, a mencionada lei delegou à SUPRA poderes especiais  de  desapropriação para o fim de promover a justa distribuição da propriedade e condicionar o seu uso ao bem-estar social, como seja, realizar a reforma agrária, com a eliminação do latifúndio e do minifúndio.

No uso da competência e dos poderes que lhe foram delegados pelo Poder Público, a SUPRA procedeu a desapropriação de alguns imóveis rurais no antigo Estado da Guanabara (Decreto n.º 52.480, de 18.09.1963) e no Estado do Rio de Janeiro (Decreto n.º 51.905, de 19.04.1963), e a assentamentos na faixa de fronteira nacional, no Estado do Paraná, cujas terras foram incorporadas ao patrimônio federal pelo Decreto n.º 53.652, 03.03.1964.

Em 13 de março de 1964, pelo Decreto n.º 53.700, o Governo Federal declarou de interesse social, para fins de desapropriação, “as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez) quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem.” (art. 1.º)

O artigo 2.º do referido decreto excluiu da desapropriação objetivada as propriedades dos imóveis rurais:

a)     que não tivessem área superior a 500 (quinhentos) hectares, quando situadas ao longo dos eixos rodoviários e ferroviários, e 30 (trinta) hectares, quando localizadas em terras beneficiadas ou recuperadas em virtude de obras de irrigação, drenagem e açudagem;

b)    as que vinham sendo social e adequadamente aproveitadas, com índices de produção não inferior à média da respectiva região, atendidas as condições naturais de seu solo, os benefícios introduzidos pelos investimentos da União em obras de irrigação e drenagem e sua situação em relação aos mercados; e

c)      as que fossem de domínio e posse dos Estados, Distrito Federal, territórios e municípios ou que, em virtude de autorização legislativa anterior, foram destinadas á construção de estabelecimentos militares necessários à segurança nacional ou já estivessem utilizadas na formação de núcleos agrícolas, campos de experimentação, fazendas-modelo ou em outras atividades estimuladoras do desenvolvimento agropecuário nacional.

Depreende-se das disposições dos dois artigos iniciais do decreto citado que a desapropriação por interesse social visada alcançava primordialmente os latifúndios, as quais seriam as propriedades privadas de grande e média extensões, improdutivas econômica ou socialmente, conforme inclusive disposto no artigo 12 do mesmo edito, in verbis:  

 

“Art. 12. Na efetivação das desapropriações facultadas por este decreto, a SUPRA dará prioridade às terras situadas nas regiões de maior densidade demográfica, mais próximas dos grandes centros de consumo e onde mais frequentemente se verifique a existência de latifúndios   improdutivos ou explorados antieconomicamente.” 

 

Os imóveis rurais com dimensões até 30 (trinta) hectares, em um caso, e até 500 (quinhentos hectares), em outro, foram excluídos da desapropriação por interesse social, conforme previsto pelo artigo 2.º, alínea “a”, do próprio decreto autorizador da medida expropriatória; o que não significava isenção de desapropriação por interesse social para os minifúndios, outro tipo de propriedade com uso antieconômico e antissocial, os quais poderiam ser também objetivados por outro decreto declaratório da medida sobre eles.   

Ante a múltipla localização no País das áreas  declaradas de interesse social, o artigo 3.º (caput) do decreto em comento autorizou à SUPRA promover gradativamente as desapropriações objetivadas para, com o fito do cumprimento da função social da propriedade, redistribuí-las mediante a fixação de trabalhadores rurais nas áreas adequadas à exploração de atividades agropastoris (al. ”b”); o estabelecimento de colônias, núcleos ou cooperativas agropecuárias e de povoamento (al. ”d”); e a proteção do solo e a preservação de cursos e manutenção de água e de reservas florestais (alínea ”e”).

Com a disposição da alínea “e” do artigo 3.º, retro citada, a legislação brasileira avançou no sentido da ampliação dos fundamentos do conceito de função social da propriedade para além do socioeconômico, com a inclusão da razão ecológica.

Outras disposições notáveis no Decreto n.º 53.700 de 13.04.1964, foram a redistribuição dos imóveis desapropriados em lotes rurais com área máxima de 100 (cem) hectares, mediante venda com vinte (20) anos de prazo para pagamento, ou locação pelo prazo mínimo de dez (10) anos, e a proibição expressa de desmembramento ou divisão dos lotes rurais a serem redistribuídos pela SUPRA, inclusive por transmissão causa mortis, devendo os herdeiros, ou legatários, manter o imóvel indiviso em estado de comunhão, até a consolidação da propriedade em um único titular. (art. 3.º, § 2.º)

O Decreto n.º 53.700 a 13 de março de 1964, conquanto fosse um ato politicamente correto, por sua justeza no enfrentamento da grave crise social esteada economicamente na questão agrária, e juridicamente exigível, por ser ato de cumprimento de princípio insculpido na Constituição da República e não observado por mais de dezessete anos, foi utilizado perversamente pelo estamento conservador e seus confrades militares e eclesiais, para motivar o golpe de estado de 1.º de abril do mesmo ano (dezenove dias depois), que se deu com a deposição do Presidente João Goulart do cargo e introduziu o regime castrense autoritário e vigorou por vinte e um anos.

Instalado o governo de transição do estado democrático para o estado ditatorial, o presidente da Câmara dos Deputados, no exercício interino da Presidência da República, promoveu a revogação expressa do Decreto n.º 53.700, de 13 de março de 1964, ao se completar justamente um mês da sua vigência, com a publicação em 13.04.1964 do Decreto n.º 53.883, da mesma data, cuja disposição revocatória se cingiu a uma frase com cerca de cinquenta caracteres:

“Art. 1.º Fica revogado o Decreto nº 53.700, de 13 de março de 1964.”

Essa revogação se deu sem justificativa oficial alguma.

No entanto, não poderia o novo regime político brasileiro deixar-se inerte ante a grave crise social alimentada pela questão agrária e ainda por ter sido o Brasil signatário, em agosto de 1961, da Carta de Punta del Este, resultado do encontro de países latino-americanos no Uruguai, sob o estímulo dos Estados Unidos da América, para fazer frente ao avanço do socialismo em território do Novo Mundo, popularizado com a vitória da Revolução Cubana em 1.º de janeiro de 1959.

Os estados signatários da Carta de Punta del Este assumiram o compromisso de realizarem planos com o objetivo de atender as necessidades sociais básicas das suas populações, com ênfase em habitação, educação, saúde, melhoria das condições de trabalho e acesso à terra, patrocinados pelo programa Aliança para o Progresso, dirigido pela United States Agency for International Development (USAID).

Esse compromisso internacional é mencionado na Mensagem n.º 33 da Presidência da República, de 28.10.1964, que encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei do Estatuto da Terra, Lei n.º 4.504, de 30.11.1964, no qual se proclama que à propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e enuncia os elementos dessa funcionalidade (arts. 2.º, § 1.º, e 12) e se determina que o Poder Público promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração que contrarie os elementos enunciados (art. 13).

A essa altura, parecia que o latifúndio e o minifúndio estavam com os seus dias contados.

 

3.    A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária na Emenda Constitucional n.º 10 de 1964 e na Constituição-instrumento semi outorgada de 1967.

 Com o novo regime instalado em 1.º de abril de 1964, a desapropriação por interesse social como instrumento da reforma agrária permaneceu dificultada em face da exigência constitucional de indenização prévia em dinheiro, o que requisitaria recursos financeiros imediatos extraordinários do Tesouro Nacional.

As hipóteses alternativas cogitadas com vistas a diminuir a despesa com as desapropriações para a reforma agrária, tais como o imposto progressivo sobre a propriedade territorial rural e a colonização com uso de terras devolutas encontravam também os seus óbices.

O imposto progressivo sobre a propriedade rural, fundamentado no “imposto único sobre a terra” defendido por Henry GEORGE como instrumento para redução das crises econômicas, causadas pelas desigualdades de emprego e renda, tinha como primeira dificuldade a competência constitucional dos Estados para decretar o Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (art. 19, inc. I) 2[4],  o que implicava na impossibilidade jurídica de uniformização nacional das regras tributárias, imprescindível à aplicação do imposto como ferramenta  para impelir o proprietário a dar ao imóvel rural a sua função social ou transferir o bem a quem melhor o destinasse econômica e socialmente, pelo peso do encargo tributário crescente anual.

Outra dificuldade para a implantação da tributação progressiva sobre o imóvel rural não usado na sua função social era o domínio absoluto que, agora, a representação política conservadora tinha nas duas casas do Congresso Nacional, radicalmente hostil à reforma agrária.

A disponibilização de terras devolutas para a colonização, não pode ser considerada instrumento da reforma agrária, nem menos política pública com capacidade de substituir a reforma agrária, porque se trata de processo de ocupação ordenada de terras virgens e, por isso, não elimina os latifúndios e os minifúndios da estrutura fundiária, preservando a causa da questão agrária, cujo enfrentamento é o escopo econômico da reforma agrária.

Ainda que, por hipótese, os efeitos sociais degradantes da questão agrária possam ser minimizados pelo processo colonizador com terras públicas, a sua implementação apresenta dois problemas, um de ordem constitucional e, outro, de ordem de finanças públicas, quais sejam: (a)  as terras devolutas de domínio da União Federal sendo restritas às situadas na faixa de fronteiras e nos territórios, haveria que se emendar a Constituição Federal para que terras devolutas do domínio dos Estados passassem ao domínio federal no objetivo de suprir o estoque de terras necessárias para o empreendimento; e (b) as terras virgens, próprias para a colonização, se encontram em regiões de baixa povoação, a serem ocupadas por camponeses de outras regiões, onde se dão os conflitos causados pela questão agrária, cuja transferência gera custos de enorme alçada para a escassa disponibilidade financeira pública, igual a indenização por desapropriação em dinheiro.

O Poder Federal, para atenuar as dificuldades com a aplicação dos instrumentos da reforma agrária e com a colonização, promoveu a promulgação da Emenda Constitucional n.º 10, de 09.11.1964, que modificou as disposições dos artigos 5.º, 15, 141, 147 e 156 da Constituição Federal de 1946.

Com relação às terras devolutas estaduais, o artigo 6.º da Emenda em questão modificou o Parágrafo Primeiro do artigo 156 da Constituição emendada para estipular que “os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas que tenham morada habitual, preferência para aquisição até cem hectares”, e o Parágrafo Segundo para excetuar da exigência de prévia aprovação do Senado Federal a alienação ou concessão de terras públicas destinadas à colonização, pública ou privada,  conforme plano aprovado pelo Governo Federal.

De importância para a reforma agrária, em primeiro, o artigo 2.º da Emenda em alusão modificou o artigo 15 da Constituição Federal para atribuir à União a competência para decretar o Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural, mantendo o produto da sua arrecadação como renda dos municípios onde se localizam os imóveis tributados.

Em segundo, o artigo 4.º da Emenda modificou o Parágrafo Dezesseis da Constituição para incluir, na previsão da desapropriação mediante prévia e justa indenização em dinheiro, a exceção de desapropriação da propriedade territorial rural com pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, constante da disposição dos parágrafos ao artigo 147 constitucional, introduzidos pelo artigo 5.º da mesma Emenda.

A normatização da progressividade do ITR (Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural) não se fez como deveria para que a tributação da terra funcionasse efetivamente como instrumento de reforma agrária, posto que, na imposição anual do tributo dentro do Sistema Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25.10.1966, arts. 29 a 31), foram observadas disposições do Estatuto da Terra (arts. 47 a 52 da Lei n.º 4.504, de 30.11.1964) de processamento de cálculo a resultarem em alíquota máxima de apenas 3,456 % do valor da terra nua (VTN) do imóvel social e economicamente mal explorado, ou mesmo mantido sem exploração alguma, quer-se dizer os latifúndios. Pela aplicação dessa alíquota máxima, a carga tributária levaria vinte e nove anos para se igualar ao VTN do imóvel latifundiário, mantido o seu uso nessa condição antieconômica e antissocial.

O mais valioso instrumento para a realização da exigida reforma agrária por interesse social, a desapropriação por interesse social dos latifúndios que fomentam a questão agrária, foi contemplado pela Emenda em comento (art. 5.º) com a introdução de seis parágrafos ao artigo 147 da Constituição emendada, sendo o Parágrafo Primeiro que viabilizou a aplicação do instrumento sem agravar, pelo menos de imediato, as finanças públicas, pois que inovou ao prever o pagamento da indenização pelas desapropriações daquelas propriedades rurais em títulos da dívida pública, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, corrigidas monetariamente.

O pagamento em títulos da dívida pública da indenização pela desapropriação para fins de reforma agrária, restringiu-se ao valor da terra nua das propriedades latifundiárias, permanecendo os valores referentes a benfeitorias necessárias e úteis com pagamento em dinheiro (Idem, § 4.º).

Arrimados na Emenda Constitucional n.º 10, os novos poderes da República promulgaram a lei que dispôs sobre o Estatuto da Terra, para normatizar a reforma agrária, a colonização e outros assuntos vinculados à política agrícola nacional, a qual estipulou seus artigos 17 e 18 sobre a aplicação da desapropriação por interesse social para os fins da reforma agrária, com os seguintes objetivos explicitados: (a) condicionar o uso da terra e sua função social; (b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade; (c) obrigar a exploração racional da terra; (d) permitir a recuperação social e econômica de regiões; (e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência técnica; (f) efetuar obras de renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais; (g) incrementar a eletrificação e a industrialização do meio rural;(h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias.

A desapropriação para fins de reforma agrária, nos termos da Constituição emendada, ficou reservada à competência exclusiva da União Federal e limitada a áreas incluídas em planos e projetos a serem executados em zonas prioritárias fixadas por decreto do Poder Executivo (art. 147 cit., § 3.º), cujo instrumento deveria se aplicar a imóveis rurais que se caracterizassem por serem:(a) minifúndios e latifúndios;(b) terem área beneficiada ou a ser por obras públicas de vulto; (c) área cujo proprietário desenvolva atividade predatória, recusando-se a por em prática normas de conservação dos recursos naturais; (d) área destinada a empreendimento de colonização, quando estes não tiverem logrado atingir seus objetivos; (e) área que apresente elevada incidência de arrendatários, parceiros e posseiros; (f) terras cujo uso atual, estudos levados a efeito pelo Poder Público comprovem não ser o adequado à sua vocação de uso econômico, conforme o artigo 20 do Estatuto da Terra.

Ficaram isentos da desapropriação normatizada pelo Estatuto da Terra os imóveis rurais com dimensões de até três vezes o módulo da propriedade familiar, fixado para a zona em que se localizassem, e os classificados como empresa rural, segundo a legislação agrária (E.T., art. 19, § 3.º, al. “a” e “b”).

Com a nova normatização constitucional e legal, deu-se início ao processo de reforma agrária pela edição do Decreto n.º 56.583, de 19.07.1965, que declarou área prioritária de emergência “região constituída pelas zonas Litoral-Mata do Estado de Pernambuco, Litoral-Mata, Agreste e Caatinga Litorânea, Borborema Oriental e Brejo do Estado da Paraíba”, objeto do Plano Regional de Reforma Agrária, com vistas ao estabelecimento de 5.000  unidades familiares e até cinco Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo prorrogável de dois anos.

No mesmo ano de 1965, pelo Decreto n.º 56.795, foi declarada a segunda área prioritária de emergência para fins de reforma agrária, na região do cerrado central do País, abrangendo o Distrito Federal, quarenta municípios no Estado de Goiás, inclusive Goiânia, e quatro municípios no Estado de Minas Gerais, visando o estabelecimento de três mil propriedades familiares e a organização de até três Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo prorrogável de dois anos, cuja área foi ampliada em 1966 pelo Decreto n.º 58.718, com a inclusão de outros seis municípios do cerrado mineiro.

Ainda em 1965, pelo Decreto n. 57.081, foi declarada área prioritária de emergência para reforma agrária o território de três regiões administrativas do antigo Estado da Guanabara e das zonas fisiográficas Alto da Serra, baixada do Rio Guandu, baixada da Guanabara, baixada do Rio São João, baixada dos Goitacazes e Baixada de Araruama, no Estado do Rio de Janeiro, visando a constituição de três mil unidades familiares e a organização de até seis Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo prorrogável de dois anos, cuja área foi ampliada pelo Decreto n.º 58.717 de 1966, com a inclusão das seguintes zonas fisiográficas: (a) Litoral da Bahia da Ilha Grande, Muriaé, Cantagalo e Rezende, no Estado do Rio de Janeiro; (b) a Zona da Mata em sua totalidade, cinco municípios da Zona do Campo das Vertentes, quatro municípios na Zona Sul, no Estado de Minas Gerais; e (c) Médio Paraíba, Alto Paraíba do Litoral de São Sebastião e de Mantiqueira, e os seis municípios na Zona de São Paulo, no Estado de São Paulo; estendido também o prazo da intervenção governamental para três anos.

No ano de 1966, pelo Decreto n.º 58.162 foi declarada área prioritária de emergência para fins de reforma agrária toda a extensão do Estado do Rio Grande do Sul, com o prazo prorrogável de três anos, objetivando primordialmente o remembramento e reorganização de pelo menos 5.000 minifúndios na região do Alto Uruguai e reassentamento dos minifundiários excedentes no processo de reestruturação fundiária.

Notável que a área prioritária do Estado do Rio Grande do Sul foi a única cujo decreto regulamentar estabeleceu com amplitude atividades recomendáveis para a implantação de uma verdadeira reforma agrária, além de apenas a reforma fundiária, assim como: (a) reformulação da estrutura das explotações agropecuárias e florestais, através da criação de demonstração para a difusão de métodos e práticas agropecuárias; (b) implantação de centros de desenvolvimento das comunidades, visando à melhoria dos níveis de saúde, educação, habitação e economia regionais; (c) instalação de postos de extensão rural, assistência técnica e crédito rural tecnificado, e de seguro agrário; (d) promoção de atividades de industrialização e beneficiamento de produtos agrícolas, visando à valorização e aumento da produtividade agrícola; (e) promoção de obras de infraestrutura de engenharia rural, de eletrificação, de transportes e de saneamento básico; e  (f) promoção da atualização dos métodos comerciais da produção agrícola.

Convocado extraordinariamente pelo Ato Institucional n.º 4, de 07.12.1966, para discutir, votar e promulgar a nova Constituição para a República, o Congresso Nacional, em 24 de janeiro de 1967, promulgou o projeto elaborado pelo poder institucionalizado.

A Constituição-Instrumento de 1967, no dizer de Afonso Arinos3,5 foi uma Constituição semi-outorgada4 porque fruto de um poder constituído4 e consolidadora da hipertrofia do Poder Executivo5, inclusive a este deferindo competência para expedir decretos-leis sobre segurança nacional, finanças públicas e normas tributárias, e criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. (art. 55).

No que respeita aos instrumentos a serem usados para fins de reforma agrária, a Constituição Federal de 1967 os manteve tal como estavam anteriormente à sua vigência, visto que a instituição do Imposto Sobre a Propriedade Rural continuou na competência da União Federal, com o produto da sua arrecadação pertencente aos municípios de localização dos imóveis tributados (arts. 21, III, e 24, § 1.º), e a desapropriação por interesse social da propriedade territorial também continuou na competência federal exclusiva, podendo promovê-la “mediante pagamento de justa indenização, fixada segundo os critérios que que a lei estabelecer, em títulos especiais da dívida pública” (arts. 153, § 22, e 161).

 De maior importância foi a omissão do vocábulo prévio na frase relativa ao modo de pagamento da indenização pela desapropriação por interesse social, na disposição do artigo 161 da Constituição Federal de 1967, significante de que esse pagamento poderia ser efetuado em outro tempo, a posteriori da transcrição do mandado judicial no registro de imóveis competente, em favor do Poder Público expropriante.

Conquanto parecesse resolvidos os óbices que se opunham à realização das desapropriações necessárias à reforma agrária, com as indenizações mediante pagamento em títulos da dívida, denominados Títulos da Dívida Agrária - TDA e a omissão constitucional de prévio pagamento, nos respectivos processos judiciais não se expediam, até o trânsito em julgado das decisões determinantes do valor indenizatório, os mandados aos registros de imóveis competentes das matrículas em nome do ente expropriante (o então IBRA) das terras desapropriadas e, consequentemente, de cancelamentos dos registros delas anteriores. Assim, os latifundiários desapropriados, interessados no  levantamento de oitenta por cento do depósito ofertado pelo Poder Público no início da ação expropriatória e nos altos rendimentos proporcionados pela parte indenizatória retida, em função da correção monetária acelerada, perdiam a motivação na celeridade de andamento dos respectivos processos judiciais.

A demora decorrente na conclusão do processo judicial de desapropriação impedia que o Poder Público dispusesse do domínio das terras desapropriadas para proceder a titulação dos trabalhadores rurais nelas assentados, como se deu com conhecido caso do complexo agroindustrial canavieiro composto por duas companhias no Estado de Pernambuco, cuja desapropriação judicial somente se efetivou com o passar de vinte anos da propositura da respectiva ação expropriatória, esteada no Decreto declaratório n.º 55.761, de 16.02.1965.6

 Assim, ainda que transpassadas as suas posses ao Poder Público, por efeito de despacho ad limine na ação de desapropriação, as terras dos latifúndios objeto de desapropriação permaneciam intransmissíveis aos trabalhadores assentados, ou às suas cooperativas, enquanto não se concluísse o processo judicial com a decisão irrecorrível determinadora dos valores indenizatórios, cuja situação recorrente impedia, no nosso sistema econômico, o acesso dos beneficiários da reforma agrária aos financiamentos necessários para a melhor exploração agrária.



6 O Decreto nº 55.761, de 16.02.1965, declarou de interesse social para fins de desapropriação a Usina Caxangá S. A. e a Companhia Agro-Pecuária do Amaragi S. A., ambas com sede no Estado de Pernambuco, seus complexos industriais e imóveis agrícolas, que compõem os respectivos acervos patrimoniais e determinou a assinatura de convênio entre o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), tendo por fim obstar à paralisação das atividades empresariais,e solver compromissos salariais em caráter prioritário.


 * Itálico não do original.

* Itálico não do original.

[1] Exercício da vontade sem restrições; eleitor de cabresto: eleitor que vota no candidato determinado por um chefe político ou cabo eleitoral.  

[2]  Economista norte-americano que, na segunda metade do Séc. XX, defendia o imposto único sobre a terra como eficaz instrumento para compelir os proprietários a produzirem eficientemente as suas terras, cuja teoria ficou conhecida como “georgismo”. .

[5] 3 Apud Carlos Augusto Alcântara MACHADO, a Constituição de 1967, coleção As Constituições do Brasil, Fundação Projeto Rondon, 1987, p. 4.

[4] Paulo BONAVIDES, apud Carlos Augusto Alcântara MACHADO, op. cit., p. 5.

 

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