2. A desapropriação para fins de
reforma agrária na Constituição Federal de 1946.
O Código Civil de 1916 não incluiu a
desapropriação entre os modos aquisitivos de propriedade.
Considerado que o mencionado Código é
essencialmente regulador do Direito Privado, não é estranhável aquela omissão,
pois que a desapropriação é modo de aquisição característico do Poder Público.
No entanto, por implicar a desapropriação na perda da propriedade, mormente
privada, a antiga lei geral civil a incluiu (art. 590) como modo de extinção
da propriedade, a par com a alienação, a renúncia, o abandono e o perecimento
do imóvel (art. 589), como o fez também o novo Código Civil brasileiro (art.
1.275, V).
Em que pese o antigo Código Civil não
haver disposto a obrigatoriedade de transcrição da sentença judicial de
julgamento da indenização expropriatória no registro público de imóveis,
esse título extintivo de propriedade imóvel ficou sujeito a averbação de
cancelamento no registro do imóvel desapropriado, pelo menos a partir da
vigência do Decreto n.º 4.857, de 09.11.1939, atrás citado (art. 289).
A nova Lei de Registros Públicos - Lei
n.º 6.015, de 31.12.1973 - não apenas prescreveu a matrícula no registro de
imóveis “da desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de
desapropriação, fixar o valor da indenização” (arts. 167, I, 34), como a normatizou
com efeito de obligatio faciendi:
”Art.169 Todos os atos enumerados no artigo 167 são obrigatórios e
efetuar-se-ão no cartório da situação do imóvel, ...”
Logo, é dever do órgão do Poder Público
desapropriante promover a abertura de matrícula, no Registro de Imóveis
competente, para o imóvel que desapropriar, com o registro da sua titularidade,
incontinenti ao procedimento da averbação, por cancelamento, da extinção do
direito real objeto da desapropriação (art. 167, inc. II, n. 2).
O Código de 1916, lei de essência liberal
pura, não previu o interesse social entre os modos de extinção da
propriedade por desapropriação, limitando-se, nos termos do seu artigo 590, aos
motivos de necessidade pública, com as finalidades de defesa do
território nacional; de segurança pública; de socorro público, em casos de
calamidade, salubridade pública (§1.º), e de utilidade pública, com as
finalidades de fundação de povoações e estabelecimentos de assistência,
educação ou instrução pública; de abertura, alargamento ou prolongamento de
ruas, praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias
públicas; de construção de obras, ou estabelecimentos, destinados ao bem geral
de uma localidade, sua decoração e higiene; e de a exploração de minas (§ 2.º).
A desapropriação por interesse social foi
introduzida no Direito brasileiro pela Constituição Federal de 1946, que a
previu como ressalva limitadora ao direito de propriedade, no Capítulo dos
Direitos e Garantias Individuais:
“Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
.................................................................................................
§ 16 É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social*[1],
mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente,
como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da
propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia,
assegurado o direito a indenização ulterior.”
A prescrição constitucional da
desapropriação por interesse social visou instrumentalizar o Poder Público na
promoção da distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, na
observância do princípio da função social da propriedade, contida na expressão
“O uso da propriedade será condicionada ao bem-estar social” (art. 147).
O instituto da desapropriação por
interesse social, necessária para a efetivação de um programa de reforma
agrária, passou longo tempo sem normatização legal, em resultado da pressão das
forças conservadoras, interessadas na manutenção das suas propriedades
latifundiárias, inclusive por motivação política, dado que o domínio fundiário
com “mando de baraço e cutelo”, lhes ensejava “eleitores de cabresto” nas regiões
dominadas, proporcionadores de suas próprias eleições e dos candidatos por eles
apoiados.1[2][3]
Os conservadores, contrários à regulação
da desapropriação por interesse social, arguiam escassez de recursos do Tesouro
Público para arcar com os ônus da promoção da reforma agrária, considerada a
imposição constitucional de prévia e justa indenização em dinheiro nas
desapropriações que se fariam.
No objetivo do enfrentamento do
agravamento clamoroso da questão agrária no País, no governo do Presidente João
Goulart foi promulgada, a 10 de setembro de 1962, a Lei n. 4.132, que definiu os casos de desapropriação por interesse social
e dispôs sobre a sua aplicação, prescrevendo logo no seu início:
“Art.
1.º A desapropriação por
interesse social será decretada para promover a justa distribuição da
propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147
da Constituição Federal.”
Com
vistas à realização dos elementos constitutivos da função social da
propriedade, exprimidos no artigo 1.º, retro transcrito, a Lei n.º 4.132 de 1962
marcou os casos em que o Poder Público interviria mediante a desapropriação por
interesse social de áreas passíveis de aproveitamento rural:
“Art.
2º Considera-se de interesse social:
I - o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem
correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos
centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;
II - a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em
cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola;
III - o estabelecimento e a manutenção de
colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:
...................................................................................................... VI
- as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão
de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte,
eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas
áreas socialmente aproveitadas;
VII - a proteção do solo e a preservação
de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.”
A fundamentação essencialmente de caráter
socioeconômico para a desapropriação por interesse social do imóvel rural
revela-se na dicção do Parágrafo Primeiro do citado Artigo Segundo, ao firmar
que “O disposto no item I deste artigo só se aplicará nos casos de bens
retirados de produção ou tratando-se de imóveis rurais cuja produção, por
ineficientemente explorados, seja inferior à média da região, atendidas as
condições naturais do seu solo e sua situação em relação aos mercados.” (sic)
Conquanto a previsão de desapropriação em
causa incluísse outras finalidades afora a vinculada à função social da
propriedade, como a ecológica (art. cit. inc. VII), no fundo também de
interesse social, esse instrumento expropriatório poderia servir para “o
estabelecimento e a manutenção de colônias e cooperativas de povoamento e
trabalho agrícola” (art. cit., inc. III), que não atende ao escopo nem aos
objetivos de reforma agrária.
Nesses dois primeiros artigos da Lei n. º
4.132 de 1962, se dispôs de modo geral sobre a motivação sócioeconômica e os
objetivos a alcançar com a desapropriação por interesse social, contudo sem a
rigor estabelecer o conceito da função social da propriedade e, no caso da
propriedade rural, deixou-se de mencionar elementos importantes da sua
constituição.
A premência no enfrentamento da questão
agrária induziu, de certo, a lei em foco a marcar dois anos, contados a partir
da decretação da medida, para o Poder expropriante promover a desapropriação
por interesse social e dar início às providências de aproveitamento do bem
expropriado (Lei cit., art. 3.º), prazo esse bem menor do que o de cinco anos
assinalado para os casos de desapropriação por necessidade ou utilidade pública
(Lei n. 3.365, de 21.06.1941).
Com o fito de promover a reforma agrária com a utilização da
desapropriação por interesse social, de que trata a mencionada Lei n.º 4.132 de
1962, ainda no governo do Presidente João Goulart foi editada a Lei Delegada
n.º 11, de 11.10.1962, instituindo a autarquia denominada Superintendência de Política Agrária (SUPRA), por transformação do Serviço Social Rural - SSR, do Instituto Nacional de
Imigração e Colonização - INIC, do Conselho Nacional da Reforma Agrária CNRA e
do Estabelecimento Rural do Tapajós (art. 1º).
A Lei Delegada n.º 11 de
1962 conferiu à SUPRA as atribuições de planejar, promover, e fazer executar a
reforma agrária, bem ainda de colaborar na formulação da política agrária e, em
caráter supletivo, adotar nesse objetivo as medidas complementares de
assistência técnica, financeira, educacional e sanitária, afora outras que lhe
viessem a ser concedidos por lei ou regulamento. (art. 2.º)
Por disposição determinada
no Parágrafo único do seu artigo 2.º, a mencionada lei delegou à SUPRA poderes
especiais de desapropriação para o fim de promover a justa
distribuição da propriedade e condicionar o seu uso ao bem-estar social, como
seja, realizar a reforma agrária, com a eliminação do latifúndio e do
minifúndio.
No uso da competência e dos
poderes que lhe foram delegados pelo Poder Público, a SUPRA procedeu a
desapropriação de alguns imóveis rurais no antigo Estado da Guanabara (Decreto
n.º 52.480, de 18.09.1963) e no Estado do Rio de Janeiro (Decreto n.º 51.905,
de 19.04.1963), e a assentamentos na faixa de fronteira nacional, no Estado do
Paraná, cujas terras foram incorporadas ao patrimônio federal pelo Decreto n.º
53.652, 03.03.1964.
Em 13 de março de 1964, pelo
Decreto n.º 53.700, o Governo Federal declarou de interesse social, para fins
de desapropriação, “as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez)
quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras
beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos
da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem.” (art. 1.º)
O artigo 2.º do referido decreto excluiu da desapropriação objetivada
as propriedades dos imóveis rurais:
a)
que não tivessem área superior a 500
(quinhentos) hectares, quando situadas ao longo dos eixos rodoviários e
ferroviários, e 30 (trinta) hectares, quando localizadas em terras beneficiadas
ou recuperadas em virtude de obras de irrigação, drenagem e açudagem;
b)
as que vinham sendo social e
adequadamente aproveitadas, com índices de produção não inferior à média da
respectiva região, atendidas as condições naturais de seu solo, os benefícios
introduzidos pelos investimentos da União em obras de irrigação e drenagem e
sua situação em relação aos mercados; e
c)
as que fossem de domínio e posse dos
Estados, Distrito Federal, territórios e municípios ou que, em virtude de
autorização legislativa anterior, foram destinadas á construção de
estabelecimentos militares necessários à segurança nacional ou já estivessem
utilizadas na formação de núcleos agrícolas, campos de experimentação,
fazendas-modelo ou em outras atividades estimuladoras do desenvolvimento
agropecuário nacional.
Depreende-se das disposições dos dois artigos iniciais do decreto citado
que a desapropriação por interesse social visada alcançava primordialmente os latifúndios,
as quais seriam as propriedades privadas de grande e média extensões,
improdutivas econômica ou socialmente, conforme inclusive disposto no artigo 12
do mesmo edito, in verbis:
“Art. 12. Na efetivação das desapropriações
facultadas por este decreto, a SUPRA dará prioridade às terras situadas nas
regiões de maior densidade demográfica, mais próximas dos grandes centros de
consumo e onde mais frequentemente
se verifique a existência de latifúndios improdutivos ou explorados
antieconomicamente.”
Os imóveis rurais com dimensões até 30 (trinta) hectares, em um caso, e
até 500 (quinhentos hectares), em outro, foram excluídos da desapropriação por
interesse social, conforme previsto pelo artigo 2.º, alínea “a”, do próprio
decreto autorizador da medida expropriatória; o que não significava isenção de
desapropriação por interesse social para os minifúndios, outro tipo de
propriedade com uso antieconômico e antissocial, os quais poderiam ser
também objetivados por outro decreto declaratório da medida sobre
eles.
Ante a
múltipla localização no País das áreas
declaradas de interesse social, o artigo 3.º (caput) do decreto
em comento autorizou à SUPRA promover gradativamente as
desapropriações objetivadas para, com o fito do cumprimento da função social
da propriedade, redistribuí-las mediante a fixação de trabalhadores rurais
nas áreas adequadas à exploração de atividades agropastoris (al. ”b”); o
estabelecimento de colônias, núcleos ou cooperativas agropecuárias e de
povoamento (al. ”d”); e a proteção do solo e a preservação de cursos e
manutenção de água e de reservas florestais (alínea ”e”). Com a disposição da alínea “e” do
artigo 3.º, retro citada, a legislação brasileira avançou no sentido da
ampliação dos fundamentos do conceito de função social da propriedade para
além do socioeconômico, com a inclusão da razão ecológica. Outras disposições notáveis no Decreto n.º 53.700 de 13.04.1964,
foram a redistribuição dos imóveis desapropriados em lotes rurais com área
máxima de 100 (cem) hectares, mediante venda com vinte (20) anos de prazo
para pagamento, ou locação pelo prazo mínimo de dez (10) anos, e a proibição
expressa de desmembramento ou divisão dos lotes rurais a serem redistribuídos
pela SUPRA, inclusive por transmissão causa mortis, devendo os
herdeiros, ou legatários, manter o imóvel indiviso em estado de comunhão, até
a consolidação da propriedade em um único titular. (art. 3.º, § 2.º) O Decreto n.º 53.700 a 13 de março
de 1964, conquanto fosse um ato politicamente correto, por sua justeza no
enfrentamento da grave crise social esteada economicamente na questão
agrária, e juridicamente exigível, por ser ato de cumprimento de princípio
insculpido na Constituição da República e não observado por mais de dezessete
anos, foi utilizado perversamente pelo estamento conservador e seus confrades
militares e eclesiais, para motivar o golpe de estado de 1.º de abril do
mesmo ano (dezenove dias depois), que se deu com a deposição do Presidente
João Goulart do cargo e introduziu o regime castrense autoritário e vigorou
por vinte e um anos. Instalado o governo de transição do
estado democrático para o estado ditatorial, o presidente da Câmara dos
Deputados, no exercício interino da Presidência da República, promoveu a
revogação expressa do Decreto n.º 53.700, de 13 de março de 1964, ao se
completar justamente um mês da sua vigência, com a publicação em 13.04.1964
do Decreto n.º 53.883, da mesma data, cuja disposição revocatória se cingiu a
uma frase com cerca de cinquenta caracteres: “Art. 1.º Fica revogado o Decreto
nº 53.700, de 13 de março de 1964.” Essa revogação se deu sem
justificativa oficial alguma. No entanto, não poderia o novo
regime político brasileiro deixar-se inerte ante a grave crise social
alimentada pela questão agrária e ainda por ter sido o Brasil signatário, em
agosto de 1961, da Carta de Punta del Este, resultado do encontro de países
latino-americanos no Uruguai, sob o estímulo dos Estados Unidos da América,
para fazer frente ao avanço do socialismo em território do Novo Mundo,
popularizado com a vitória da Revolução Cubana em 1.º de janeiro de 1959. Os estados signatários da Carta de
Punta del Este assumiram o compromisso de realizarem planos com o objetivo de
atender as necessidades sociais básicas das suas populações, com ênfase em
habitação, educação, saúde, melhoria das condições de trabalho e acesso à
terra, patrocinados pelo programa Aliança para o Progresso, dirigido pela
United States Agency for International Development (USAID). Esse compromisso internacional é
mencionado na Mensagem n.º 33 da Presidência da República, de 28.10.1964, que
encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei do Estatuto da Terra, Lei
n.º 4.504, de 30.11.1964, no qual se proclama que à propriedade privada da
terra cabe intrinsecamente uma função social e enuncia os elementos dessa
funcionalidade (arts. 2.º, § 1.º, e 12) e se determina que o Poder Público
promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração que
contrarie os elementos enunciados (art. 13). A essa altura, parecia que o
latifúndio e o minifúndio estavam com os seus dias contados. 3. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária na Emenda Constitucional n.º 10 de 1964 e na Constituição-instrumento semi outorgada de 1967. As
hipóteses alternativas cogitadas com vistas a diminuir a despesa com as
desapropriações para a reforma agrária, tais como o imposto progressivo sobre
a propriedade territorial rural e a colonização com uso de terras devolutas
encontravam também os seus óbices. O
imposto progressivo sobre a propriedade rural, fundamentado no “imposto único
sobre a terra” defendido por Henry GEORGE como instrumento para redução das
crises econômicas, causadas pelas desigualdades de emprego e renda, tinha
como primeira dificuldade a competência constitucional dos Estados para
decretar o Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (art. 19, inc. I) 2[4],
o que implicava na impossibilidade jurídica de uniformização nacional
das regras tributárias, imprescindível à aplicação do imposto como
ferramenta para impelir o proprietário
a dar ao imóvel rural a sua função social ou transferir o bem a quem melhor o
destinasse econômica e socialmente, pelo peso do encargo tributário crescente
anual. Outra
dificuldade para a implantação da tributação progressiva sobre o imóvel rural
não usado na sua função social era o domínio absoluto que, agora, a
representação política conservadora tinha nas duas casas do Congresso
Nacional, radicalmente hostil à reforma agrária. A disponibilização de terras
devolutas para a colonização, não pode ser considerada instrumento da reforma
agrária, nem menos política pública com capacidade de substituir a
reforma agrária, porque se trata de processo de ocupação ordenada de terras
virgens e, por isso, não elimina os latifúndios e os minifúndios da estrutura
fundiária, preservando a causa da questão agrária, cujo enfrentamento é o
escopo econômico da reforma agrária. Ainda que, por hipótese, os efeitos
sociais degradantes da questão agrária possam ser minimizados pelo processo
colonizador com terras públicas, a sua implementação apresenta dois
problemas, um de ordem constitucional e, outro, de ordem de finanças
públicas, quais sejam: (a) as terras
devolutas de domínio da União Federal sendo restritas às situadas na faixa de
fronteiras e nos territórios, haveria que se emendar a Constituição Federal
para que terras devolutas do domínio dos Estados passassem ao domínio federal
no objetivo de suprir o estoque de terras necessárias para o empreendimento;
e (b) as terras virgens, próprias para a colonização, se encontram em regiões
de baixa povoação, a serem ocupadas por camponeses de outras regiões, onde se
dão os conflitos causados pela questão agrária, cuja transferência gera
custos de enorme alçada para a escassa disponibilidade financeira pública,
igual a indenização por desapropriação em dinheiro. O
Poder Federal, para atenuar as dificuldades com a aplicação dos instrumentos
da reforma agrária e com a colonização, promoveu a promulgação da Emenda
Constitucional n.º 10, de 09.11.1964, que modificou as disposições dos
artigos 5.º, 15, 141, 147 e 156 da Constituição Federal de 1946. Com
relação às terras devolutas estaduais, o artigo 6.º da Emenda em questão modificou
o Parágrafo Primeiro do artigo 156 da Constituição emendada para estipular
que “os Estados assegurarão aos posseiros de
terras devolutas que tenham morada habitual, preferência para aquisição até
cem hectares”, e o Parágrafo Segundo para excetuar da exigência de prévia
aprovação do Senado Federal a alienação ou concessão de terras públicas
destinadas à colonização, pública ou privada,
conforme plano aprovado pelo Governo Federal. De importância para a reforma
agrária, em primeiro, o artigo 2.º da Emenda em alusão modificou o artigo 15
da Constituição Federal para atribuir à União a competência para decretar o
Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural, mantendo o produto da sua
arrecadação como renda dos municípios onde se localizam os imóveis tributados.
Em
segundo, o artigo 4.º da Emenda modificou o Parágrafo Dezesseis da
Constituição para incluir, na previsão da desapropriação mediante prévia e
justa indenização em dinheiro, a exceção de desapropriação da propriedade
territorial rural com pagamento da prévia e justa indenização em títulos
especiais da dívida pública, constante da disposição dos parágrafos ao artigo
147 constitucional, introduzidos pelo artigo 5.º da mesma Emenda. A
normatização da progressividade do ITR (Imposto Sobre a Propriedade
Territorial Rural) não se fez como deveria para que a tributação da terra
funcionasse efetivamente como instrumento de reforma agrária, posto que, na
imposição anual do tributo dentro do Sistema Tributário Nacional (Lei n.
5.172, de 25.10.1966, arts. 29 a 31), foram observadas disposições do
Estatuto da Terra (arts. 47 a 52 da Lei n.º 4.504, de 30.11.1964) de
processamento de cálculo a resultarem em alíquota máxima de apenas 3,456 % do
valor da terra nua (VTN) do imóvel social e economicamente mal explorado, ou
mesmo mantido sem exploração alguma, quer-se dizer os latifúndios.
Pela aplicação dessa alíquota máxima, a carga tributária levaria vinte e
nove anos para se igualar ao VTN do imóvel latifundiário, mantido o seu
uso nessa condição antieconômica e antissocial. O mais valioso instrumento para a
realização da exigida reforma agrária por interesse social, a desapropriação
por interesse social dos latifúndios que fomentam a questão agrária, foi
contemplado pela Emenda em comento (art. 5.º) com a introdução de seis
parágrafos ao artigo 147 da Constituição emendada, sendo o Parágrafo Primeiro
que viabilizou a aplicação do instrumento sem agravar, pelo menos de
imediato, as finanças públicas, pois que inovou ao prever o pagamento da
indenização pelas desapropriações daquelas propriedades rurais em títulos
da dívida pública, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas
anuais sucessivas, corrigidas monetariamente. O pagamento em títulos da dívida pública da
indenização pela desapropriação para fins de reforma agrária, restringiu-se
ao valor da terra nua das propriedades latifundiárias, permanecendo os
valores referentes a benfeitorias necessárias e úteis com pagamento em
dinheiro (Idem, § 4.º). Arrimados na Emenda Constitucional n.º 10, os novos poderes
da República promulgaram a lei que dispôs sobre o Estatuto da Terra, para normatizar
a reforma agrária, a colonização e outros assuntos vinculados à política
agrícola nacional, a qual estipulou seus artigos 17 e 18 sobre a aplicação da
desapropriação por interesse social para os fins da reforma agrária, com os
seguintes objetivos explicitados: (a) condicionar o uso da terra e sua função
social; (b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade; (c)
obrigar a exploração racional da terra; (d) permitir a recuperação social e
econômica de regiões; (e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação,
demonstração e assistência técnica; (f) efetuar obras de renovação, melhoria
e valorização dos recursos naturais; (g) incrementar a eletrificação e a
industrialização do meio rural;(h) facultar a criação de áreas de proteção à
fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de
atividades predatórias. A desapropriação para fins de reforma
agrária, nos termos da Constituição emendada, ficou reservada à competência
exclusiva da União Federal e limitada a áreas incluídas em planos e
projetos a serem executados em zonas prioritárias fixadas por decreto do
Poder Executivo (art. 147 cit., § 3.º), cujo instrumento deveria se
aplicar a imóveis rurais que se caracterizassem por serem:(a) minifúndios e
latifúndios;(b) terem área beneficiada ou a ser por obras públicas de vulto;
(c) área cujo proprietário desenvolva atividade predatória, recusando-se a
por em prática normas de conservação dos recursos naturais; (d) área
destinada a empreendimento de colonização, quando estes não tiverem logrado
atingir seus objetivos; (e) área que apresente elevada incidência de
arrendatários, parceiros e posseiros; (f) terras cujo uso atual, estudos levados
a efeito pelo Poder Público comprovem não ser o adequado à sua vocação de uso
econômico, conforme o artigo 20 do Estatuto da Terra. Ficaram isentos da desapropriação normatizada
pelo Estatuto da Terra os imóveis rurais com dimensões de até três vezes o
módulo da propriedade familiar, fixado para a zona em que se localizassem, e
os classificados como empresa rural, segundo a legislação agrária (E.T., art.
19, § 3.º, al. “a” e “b”). Com a nova normatização constitucional e legal,
deu-se início ao processo de reforma agrária pela edição do Decreto n.º 56.583,
de 19.07.1965, que declarou área prioritária de emergência “região
constituída pelas zonas Litoral-Mata do Estado de Pernambuco, Litoral-Mata,
Agreste e Caatinga Litorânea, Borborema Oriental e Brejo do Estado da Paraíba”,
objeto do Plano Regional de Reforma Agrária, com vistas ao estabelecimento de
5.000 unidades familiares e até cinco
Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo prorrogável de dois anos. No
mesmo ano de 1965, pelo Decreto n.º 56.795, foi declarada a segunda área
prioritária de emergência para fins de reforma agrária, na região do cerrado
central do País, abrangendo o Distrito Federal, quarenta municípios no Estado
de Goiás, inclusive Goiânia, e quatro municípios no Estado de Minas Gerais, visando
o estabelecimento de três mil propriedades familiares e a organização de até
três Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo prorrogável de dois
anos, cuja área foi ampliada em 1966 pelo Decreto n.º 58.718, com a inclusão
de outros seis municípios do cerrado mineiro. Ainda em 1965, pelo Decreto n. 57.081, foi declarada área
prioritária de emergência para reforma agrária o território de três regiões
administrativas do antigo Estado da Guanabara e das zonas fisiográficas Alto
da Serra, baixada do Rio Guandu, baixada da Guanabara, baixada do Rio São
João, baixada dos Goitacazes e Baixada de Araruama, no Estado do Rio de
Janeiro, visando a constituição de três mil unidades familiares e a
organização de até seis Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, no prazo
prorrogável de dois anos, cuja área foi ampliada pelo Decreto n.º 58.717 de
1966, com a inclusão das seguintes zonas fisiográficas: (a) Litoral da Bahia
da Ilha Grande, Muriaé, Cantagalo e Rezende, no Estado do Rio de Janeiro; (b)
a Zona da Mata em sua totalidade, cinco municípios da Zona do Campo das
Vertentes, quatro municípios na Zona Sul, no Estado de Minas Gerais; e (c)
Médio Paraíba, Alto Paraíba do Litoral de São Sebastião e de Mantiqueira, e
os seis municípios na Zona de São Paulo, no Estado de São Paulo; estendido
também o prazo da intervenção governamental para três anos. No ano de 1966, pelo Decreto n.º 58.162 foi declarada área
prioritária de emergência para fins de reforma agrária toda a extensão do
Estado do Rio Grande do Sul, com o prazo prorrogável de três anos,
objetivando primordialmente o remembramento e reorganização de pelo menos
5.000 minifúndios na região do Alto Uruguai e reassentamento dos
minifundiários excedentes no processo de reestruturação fundiária. Notável
que a área prioritária do Estado do Rio Grande do Sul foi a única cujo
decreto regulamentar estabeleceu com amplitude atividades recomendáveis para
a implantação de uma verdadeira reforma agrária, além de apenas a reforma
fundiária, assim como: (a) reformulação da estrutura das explotações
agropecuárias e florestais, através da criação de demonstração para a difusão
de métodos e práticas agropecuárias; (b) implantação de centros de
desenvolvimento das comunidades, visando à melhoria dos níveis de saúde, educação,
habitação e economia regionais; (c) instalação de postos de extensão rural,
assistência técnica e crédito rural tecnificado, e de seguro agrário; (d)
promoção de atividades de industrialização e beneficiamento de produtos
agrícolas, visando à valorização e aumento da produtividade agrícola; (e)
promoção de obras de infraestrutura de engenharia rural, de eletrificação, de
transportes e de saneamento básico; e
(f) promoção da atualização dos métodos comerciais da produção
agrícola. Convocado
extraordinariamente pelo Ato Institucional n.º 4, de 07.12.1966, para
discutir, votar e promulgar a nova Constituição para a República, o Congresso
Nacional, em 24 de janeiro de 1967, promulgou o projeto elaborado pelo poder
institucionalizado. A
Constituição-Instrumento de 1967, no dizer de Afonso Arinos3,5 foi uma Constituição
semi-outorgada4 porque fruto de um poder
constituído4 e consolidadora da
hipertrofia do Poder Executivo5, inclusive
a este deferindo competência para expedir decretos-leis sobre segurança nacional,
finanças públicas e normas tributárias, e criação de cargos públicos e
fixação de vencimentos. (art. 55). No que respeita aos
instrumentos a serem usados para fins de reforma agrária, a Constituição
Federal de 1967 os manteve tal como estavam anteriormente à sua vigência,
visto que a instituição do Imposto Sobre a Propriedade Rural continuou na
competência da União Federal, com o produto da sua arrecadação pertencente
aos municípios de localização dos imóveis tributados (arts. 21, III, e 24, §
1.º), e a desapropriação por interesse social da propriedade territorial
também continuou na competência federal exclusiva, podendo promovê-la
“mediante pagamento de justa indenização, fixada segundo os critérios que que
a lei estabelecer, em títulos especiais da dívida pública” (arts. 153, § 22,
e 161). De maior importância foi a omissão do
vocábulo prévio na frase relativa ao modo de pagamento da indenização
pela desapropriação por interesse social, na disposição do artigo 161 da
Constituição Federal de 1967, significante de que esse pagamento poderia ser
efetuado em outro tempo, a posteriori da transcrição do mandado
judicial no registro de imóveis competente, em favor do Poder Público expropriante. Conquanto parecesse
resolvidos os óbices que se opunham à realização das desapropriações
necessárias à reforma agrária, com as indenizações mediante pagamento em
títulos da dívida, denominados Títulos da Dívida Agrária - TDA e a omissão
constitucional de prévio pagamento, nos respectivos processos judiciais não
se expediam, até o trânsito em julgado das decisões determinantes do valor
indenizatório, os mandados aos registros de imóveis competentes das
matrículas em nome do ente expropriante (o então IBRA) das terras
desapropriadas e, consequentemente, de cancelamentos dos registros delas
anteriores. Assim, os latifundiários desapropriados, interessados no levantamento de oitenta por cento do
depósito ofertado pelo Poder Público no início da ação expropriatória e nos
altos rendimentos proporcionados pela parte indenizatória retida, em função
da correção monetária acelerada, perdiam a motivação na celeridade de
andamento dos respectivos processos judiciais. A demora decorrente na conclusão do processo judicial de desapropriação impedia que o Poder Público dispusesse do domínio das terras desapropriadas para proceder a titulação dos trabalhadores rurais nelas assentados, como se deu com conhecido caso do complexo agroindustrial canavieiro composto por duas companhias no Estado de Pernambuco, cuja desapropriação judicial somente se efetivou com o passar de vinte anos da propositura da respectiva ação expropriatória, esteada no Decreto declaratório n.º 55.761, de 16.02.1965.6 Assim, ainda que transpassadas as suas posses
ao Poder Público, por efeito de despacho ad limine na ação de
desapropriação, as terras dos latifúndios objeto de desapropriação permaneciam
intransmissíveis aos trabalhadores assentados, ou às suas cooperativas,
enquanto não se concluísse o processo judicial com a decisão irrecorrível
determinadora dos valores indenizatórios, cuja situação recorrente impedia, no
nosso sistema econômico, o acesso dos beneficiários da reforma agrária aos
financiamentos necessários para a melhor exploração agrária.
6 O Decreto nº 55.761, de 16.02.1965, declarou de interesse social para fins de desapropriação a Usina Caxangá S. A. e a Companhia Agro-Pecuária do Amaragi S. A., ambas com sede no Estado de Pernambuco, seus complexos industriais e imóveis agrícolas, que compõem os respectivos acervos patrimoniais e determinou a assinatura de convênio entre o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), tendo por fim obstar à paralisação das atividades empresariais,e solver compromissos salariais em caráter prioritário. |
* Itálico não do original.
* Itálico não do original.
[1] Exercício da vontade sem restrições; eleitor de cabresto: eleitor que vota no candidato determinado por um chefe político ou cabo eleitoral.
[2] Economista norte-americano que, na segunda metade do Séc. XX, defendia o imposto único sobre a terra como eficaz instrumento para compelir os proprietários a produzirem eficientemente as suas terras, cuja teoria ficou conhecida como “georgismo”. .
[5] 3 Apud Carlos Augusto Alcântara MACHADO, a Constituição de 1967, coleção As Constituições do Brasil, Fundação Projeto Rondon, 1987, p. 4.
[4] Paulo BONAVIDES, apud Carlos Augusto Alcântara MACHADO,
op. cit., p. 5.